Cultura digital, sociedade e política

12/06/2014

Arquivologia e o moderno: a conservação da preservação

Filed under: Jimmy Pitondo — Tags:, , , — jimmymp @ 17:10

A Arquivologia é uma área do pensamento ligada a ciência da informação. Entre inúmeras funções, tem como objetivos centrais a organização, conservação e preservação de documentos em arquivos com base em conceitos e técnicas desenvolvidos em conjunto de cada um desses processos. Sua importância enquanto um campo do conhecimento que trabalha o próprio conhecimento se justifica através de seu papel na preservação e compartilhamento do material já produzido, bem como do que virá a ser produzido. A princípio, os arquivos nascem juntos com as bibliotecas em um mesmo espaço físico. Produção e preservação constituíam um corpo uno, concomitante ao avanço da produção e desenvolvimento do pensamento humano, portanto nascem quando os homens tomam consciência da proliferação dos saberes, ambos representam uma tentativa de contenção e dominação ao lado de um desejo de posse e conservação. O saber é poder.

Nesse contexto, nos é interessante analisar seu lugar ao lado do fenômeno Moderno de transformações das relações entre tempo e espaço, os constantes avanços tecnológicos, além das novas formas de produção do conhecimento e de compartilhamento. Primeiramente podemos assumir que seu papel é profundamente abalado por conta das consequências das práticas engendradas por essa dinâmica, através dos novos equipamentos e, principalmente, pela Internet. A pequena rede de computadores interligados criada pela Advanced Research Projects Agency (ARPA) em 1969, talvez nunca tenha imaginado as mudanças sociais estimuladas pelo impacto que, ao longo da década de 1990 e 2000, seu projeto impulsionou. Hoje, quando pensamos em meio técnico, ou seja, um elemento material com que, ou por meio do qual, a informação ou o conteúdo simbólico é fixado e transmitido através de uma rede que vai do produtor ao receptor, a Internet se apresenta como grande protagonista na produção e reprodução dessas novas relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Então, a informação nesse ambiente de arquitetura descentralizada, polifórmico e interrelacionado da cultura digital e tecnológica, assim como em seus primórdios, se faz em sua completude através da sua produção, recepção e reprodução. Em qualquer sociedade os indivíduos que ocupam determinados lugares e possuem determinadas funções, se ocupam também da produção e, principalmente, do intercâmbio de informações e conhecimentos. Esse movimento está contido desde as mais antigas formas de comunicação gestual e do uso da linguagem até nas grandes redes que compõem o quadro de poder e de mudança contemporâneo. Como vimos, a preservação e conservação do conhecimento desde seus primórdios concentrado em Alexandria, constituía-se como uma relação de poder. Hoje vemos uma mudança nesse polo centralizador, bem como uma intensificação dessa dinâmica, pois ‘‘[...] a mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas de construção de significado e, portanto, a produção de relações de poder’’(Castells. 2013:11). Assim, esta é a questão que se coloca: como a Arquivologia pode acompanhar e se adaptar a forma como se realiza essa produção, seu armazenamento e sua circulação? Esse tipo de dúvida tem aspecto central da vida social Moderna.

Antes de nossos dedos serem condenados ao eterno movimento pendular nas telas touch screen, nós os utilizávamos para construir redes. As redes sempre foram vistas como ferramentas para organização por conta de sua natureza flexível e sua adaptabilidade. Essas características contidas em um ambiente líquido de rápida mutação, transformações, se tornam essenciais para a sobrevivência do homem. Tanto que ainda hoje vivemos em uma sociedade de redes, porém uma rede em outro formato: maior e mundial (Castells. 2013). Não mais feitas de fibras, mas baseadas na Internet. Um universo de informações disponíveis em nossos dedos.

Vejamos como é essa relação entre o velho e o novo. Uma das principais diferenças entre a preservação digital e a dos formatos tradicionais de registro está no fato dos dados digitais terem a possibilidade de não se verem obrigados a sobreviver por obra do acaso. Ao longo da produção desses dados é possível tomar uma decisão consciente em relação a sua preservação já ao longo do seu processo de produção, assumindo um compromisso de mantê-los vivos, à exemplo contrário do que era feito antes, em um tempo no qual eram encontradas por acaso coisas guardadas no sótão ou porão de alguma casa velha por 50 ou mais anos e que ainda era possível a recuperação e a leitura desses documentos por pura sorte. Mas, ainda assim, mesmo com essa possibilidade se constitui um problema a pouca atenção dada à preservação de textos eletrônicos em longo prazo, podemos enumerar duas principais causas: (1) devido à quantidade enorme de material produzido diariamente, e o (2) tempo que se leva para concluir se vale à pena ou não o esforço, energia e recursos em sua preservação, pois, devemos sempre lembrar que essa agilidade produtiva é ao mesmo tempo causa ocasional de superficialidade e efemeridade de grande parte do que é produzido.

A ideia do progresso, da entrada no futuro deixando o passado para trás junto com a bagagem de antigos sistemas obsoletos se coloca como um obstáculo na preservação e conservação do conhecimento em suas novas formas. Anos atrás o papel substituiu a pedra e, agora, o papel está claramente sendo trocado por novas formas de registro e acesso ao conhecimento, mas não podemos nos esquecer que um papel, nas devidas circunstâncias, pode durar séculos e continuar legível ao olhar humano, o qual, provavelmente, não irá mudar nos próximos séculos, por outro lado, os discos, memórias e formatos de dados mudam a cada ano. Ora, assim como a sobrevivência física das informações registradas é crucial, a nossa capacidade de decifrar e entender o seu significado também o é. O problema está no fato de que esse enorme volume de dados produzidos acumula e cresce em tal velocidade que não há tempo, energia ou recursos para pensar se todas as informações antigas foram convertidas para um novo meio antes de sua obsolescência. É preciso ter especialistas em sistemas de migração, pois a maioria dos pesquisadores futuros irá querer essas informações numa época em que a tecnologia usada para gerá-las provavelmente terá desaparecido do mercado.

O papel da Arquivologia tanto em relação a essas fontes quanto as fontes físicas, em papel, microfilmes, negativos fotográficos, filmes, discos fonográficos e gravações de áudio e vídeo em diversos formatos etc., é garantir que essa produção importante e insubstituível seja salva e colocada à disposição para nosso próprio uso, bem como o das próximas gerações. Muito do material que está se criando, como por exemplo, no âmbito artístico, acadêmico e jornalístico, já é criado exclusivamente de forma eletrônica, não há sua expressão material, não é mais publicado em mídias impressas, somente em sua forma eletrônica. Assim, corremos o risco de perder tudo se não compreendermos a real importância na atenção a essa nova dinâmica e, por conseguinte, repensarmos as técnicas de preservação e conservação.

Temos portando três principais problemas a serem debatidos, grosso modo: (1) a durabilidade do próprio meio no qual o conhecimento é produzido, tanto em relação ao que podemos chamar de formas tradicionais quanto as novas formas eletrônicas, (2) a atualização constante dos equipamentos necessários para trabalhar com esses documentos, onde a importância dos sistema de migração perpassam o campo da preservação, conservação e do uso desse material em pesquisas, e, por fim destacamos as dificuldades de análise ao (3) decidir o que salvar e o que não salvar. Os novos Softwares e Hardware ao lado das transformações sociais estimuladas pela rede mundial de computadores e os usos que fazemos desse conjunto, se encaixa nessa nova dinâmica Moderna, onde tudo o que é sólido se desmancha no ar, num movimento que traz consigo a ruptura com o velho e faz surgir a possibilidade do novo. Naturalmente esse desejo pela preservação pode soar conservador demais aos progressistas, mas ao contrário, a base para as transformações está no passado, a mudança sempre é a atualização de uma potência, e essa é a única constante nesse tempo, pois ela mesma sempre deixa patamar para outra em um ciclo de destruição do velho para dar lugar ao novo que deverá destruído amanhã.

Então hoje, dentro de uma perspectiva comparada, em relação aquele conhecimento limitado a um espaço físico definido, hoje o encontramos em um único computador com inúmeros pontos de acesso ‘‘[...] reunindo a maior parte da humanidade em um território semântico unificado, ainda que infinitamente variado.’’ (Lemos; Levy. 2010:201) Por meio da grande quantidade de blogs, imagens, formas de produção e compartilhamento do conhecimento, enxergamos no ciberespaço uma objetivação técnica que da ritmo a produção cultural contemporânea, onde até mesmo o ‘‘eu’’ e suas múltiplas identidades torna-se menos ligado a uma localização física. Assim, nesse universo digitalizado, parte importante da produção humana se torna acessível a partir de qualquer ponto da rede através de distância semânticas que, como mostrou André Lemos e Pierre Levy (2010), são a base da ordem desse ciberespaço, pois são essas zonas de espaço que nos levam a esse conhecimento: nome de domínios, palavras-chave em motores de busca, hiperlinks, pirataria informacional etc., etc. Facilitando e dinamizando a produção de novos materiais.

Ainda assim, tudo isso pode se perder com a mesma facilidade que nos chega. Por conta disso é essencial desenvolver um trabalho em conjunto, consciente e auto-reflexivo acerca da forma como tratamos nosso passado, dissimulado pelo ideológico véu do progresso. Ao longo da história da humanidade, incêndios, inundações e guerras, foram eventos que sempre ameaçaram os registros humanos, é preciso ficar atendo para que o desenvolvimento tecnológico não faça parte desse grupo, prejudicando a preservação desses registros através de seu próprio desenvolvimento. O estudo da história e suas fontes é algo que agrega insumo no âmbito da construção de um conhecimento objetivo para ser usado como inspiração na elaboração de novas formas de ações no futuro, esse eterno e incerto ponto de chegada tão almejado pelas sociedades Modernas.

Bibliografia
CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões Sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
________________. Redes de Comunicação e Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2013.
LEMOS, André; LEVY, Pierre. O Espaço Virtual da Cultura In O Futuro da Internet: Em Direção a uma Ciberdemocracia Planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

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