Cultura digital, sociedade e política

15/06/2014

Funk ostentação: as mediações digitais de uma produção cultural popular e independente

Para começar falando de funk ostentação, retomo as palavras de Hermano Vianna: “No funk, o que era “carioca” ganha sotaque paulistano e vira ostentação, gerando milhões de views no YouTube e shows lotados em todo o Brasil, mesmo sem discos ou divulgação nas rádios”.

O funk sempre foi um estilo musical de pioneirismo na produção independente. O funk carioca deu um baile: um baile na indústria cultural mostrando como é possível se divulgar, se promover e acontecer através de meios alternativos. Equipes de som de grande qualidade montadas, bailes de rua, bailes em barracões nas favelas. O Funk carioca ganhou as periferias do país.

O funk criou, desde sua consolidação nos anos 80, um circuito pioneiro de produção, circulação e consumo relativamente autônomo e sustentável em relação ao modelo das grandes gravadoras (SÁ e MIRANDA, 2011).

Ele já tem essa característica de divulgação autônoma, mas hoje, diante do cenário tecnológico que vivemos, é possível alcançar outros níveis de produção e divulgação. SÁ e MIRANDA continuam: trata-se de música para dançar, com graves acentuados pelas caixas de som, cujo valor estético deve ser apreciado nas pistas. O funk ostentação/paulista mudou esse cenário; o valor estético não é mais apreciado primordialmente nas pistas. Konrad Dantas, famoso produtor de videoclipe e criador da estética da ostentação explica no documentário Funk Ostentação – O filme : “Aí surgiu uma nova… um novo segmento pro funk né, a galera começou a entender que se não fizesse videoclipe ia ficar pra trás, o público começou a cobrar. E hoje os MCs do Rio de Janeiro já tão procurando a gente já. A galera tá impressionada, a galera quer saber como é esse lance, como que a galera de São Paulo atingiu toda essa massa”.

Como a maioria já conhece, funk ostentação é uma vertente do funk carioca que tem como temática o que o próprio nome já diz. O foco é ostentar, exaltar o consumo, roupas de marca, carros, motos, bebidas caras, mulheres…

Hoje, o videoclipe, ou melhor, o webclipe tem uma importância que antes não tinha. O público não quer apenas ouvir os MCs falarem de consumo, de mulheres, de ostentação, o público quer ver tudo isso, querem ver os iates, os passeios que são narrados em Angra dos Reis, as festas. A narrativa é acompanhada da imagem em movimento.

Também chamado de funk paulista, por ter sido criado em SP, o funk ostentação já iniciou seu processo de produção através da internet. Gravar uma música de forma caseira tornou-se mais fácil com os programas que existem hoje e após isso, é só postá-la no Youtube (existem outras redes, mas os funkeiros costumam postar suas músicas no Youtube). Agora, as referências não eram mais cariocas apenas, São Paulo também passou a produzir funk.

A mídia utilizada também mudou. O CD não tem mais importância. O que sustenta essa produção atualmente é o arquivo em MP3, MP4 e outros formatos e como disse Vianna, os views no Youtube.

Para compreender melhor esse processo, fiz o que Reguillo classifica como “navegação errante”, método de pesquisa onde não se percorre um caminho já delimitado, uma linha reta e sim percebendo as próprias tramas que são traçadas nessas redes; podemos estar em uma determinada página e por meio desta ir para outras e depois, através das outras, podemos voltar para a mesma em que estávamos no início. Não é um movimento circular, a internet e suas conexões são complexas e diversas demais para reduzi-la a um círculo, ela forma exatamente o que o nome diz: redes.

Em meu Facebook, sigo várias páginas de MCs e de organizadores de rolezinhos como Duda Mel Delambers, MC Chaveirinho, Yasmin Oliveira, Juan Carlos Silvestre (Don Juan).  Eles têm o hábito de postar vídeos de músicas, se auto-divulgando ou divulgando outros artistas, vídeos estes que estão no Youtube e tem seu link postado na página do Facebook. Tornando assim, o Facebook um mediador (REGUILLO, 2012).

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Esses atores tem o chamado capital social, categoria de análise que RUCUERO leva para a cultura digital tendo como referências os estudos de Coleman, Putnam e Bourdieu. Ela explica o capital social como um conjunto de recursos de um determinado grupo que pode ser usufruído por todos os membros do grupo, ainda que individualmente, e que está baseado na reciprocidade e está embutido nas relações sociais. É como se esses atores fossem detentores das referências culturais legítimas e aquilo que é postado por eles, se não tiver concordância (embora a tendência é que aquilo que é compartilhado por eles seja sim legitimado pelo grupo), ao menos terá grande repercussão, visibilidade, pois eles são populares.

Mas não é somente pelo fato de serem populares que eles possuem capital social. Ou melhor, eles são populares por corresponderem aos padrões legitimados pelo grupo: estético, de valores, de gostos.

Isso relaciona-se com a divulgação das músicas pela rede. Cada usuário torna-se um autor de sua trilha sonora, cada um torna-se seu próprio DJ (e influencia os seus seguidores e amigos na rede) e através da opção “compartilhar” um vai de encontro aos outros, alimentando suas trilhas sonoras mutuamente.  As redes sociais, a internet funciona como mediadora e configuradora de novas mediações na produção de sentido para esses indivíduos e divulgando os artistas do funk nesse meio. (REGUILLO, 2012)

Kondzilla com um ano de carreira tinha cinquenta videoclipes e mais de 80 milhões de exibições no Youtube e ele mesmo reforça: “Falando em números, é brutal a aceitação. Não sou eu que to falando, isso é comprovado estatisticamente lá no Youtube”.

Assim como falei no início sobre as equipes de som qualificadas, nesse gênero, o funk paulista é pioneiro em produção audiovisual independente de qualidade. Pensar na cena cultural atual, é pensar em videoclipe, em trabalhar com o imaginário estético do público através das telas, é preciso de recurso e de técnica audiovisual. E essa galera tem. Os recursos tecnológicos atuais, as redes sociais possibilitaram além da divulgação e promoção dessas produções culturais, a prova de que o funk paulista/ostentação é muito popular, que caiu no gosto do público jovem do Brasil inteiro e nem só dos jovens periféricos.

Hoje, vemos MC Guime indo para Hollywood e com música tema de abertura de novela da Rede Globo. Vemos os MCs fazendo show em casas como Credcard Hall. Vemos entrevistas e matérias sobre funk ostentação em vários programas de várias emissoras de TV. O funk ostentação que começou como produção cultural independente está sendo apropriado pela indústria cultural, ganhando mais legitimidade, perdendo autenticidade e sendo conhecido no mundo inteiro.

Não se sabe quais serão as mudanças para seu formato original diante disso, mas se sabe que foi e é um movimento periférico, popular que foi capaz de ganhar muito sucesso por si só, tanto sucesso que hoje até a mídia hegemônica sabe que precisa dele para continuar agradando seu público, embora, contraditoriamente, apesar dessa glamourização toda, o funk ainda não deixou de sofrer discriminação e de ser estigmatizado pela sociedade.

REFERENCIAS

Funk Ostentação – O filme. Direção: Renato Barreiros e Konrad Dantas. Produção: Kondilla. e 3k Produtora. São Paulo – SP. 2012. Disponível em: http://vimeo.com/53679071. Acesso em 15/06/2014

REGUILLO, Rossana.  Navegaciones errantes. De músicas, jóvenes y redes: de Facebook a Youtube y viceversa  in Nueva época, núm. 18, julio-diciembre, 2012. (Departamento de Estudos de la Comunicacion Social. Universidad de Guadalajara).

RUCUERO, Raquel.  Redes sociais na internet.  Porto Alegre:                      Sulina, 2009. (Coleção Cibercultura)

SÁ, Simone Pereira de. e MIRANDA, Gabriela. Aspectos da economia musical popular no Brasil: o circuito do funk carioca. In: HERSCHMAN, Micael (org). Nas bordas e fora do mainstream musical. Novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011.

VIANNA, Hermano. Funk paulistano. 11/01/2013. Disponível em: http://hermanovianna.wordpress.com/2013/01/12/funk-paulistano/. Último acesso em: 15/06/2014

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