Cultura digital, sociedade e política

25/06/2014

Cultura digital: do “real X virtual” ao “online/offline”

Na virada dos anos 1990 para os 2000, período de popularização da internet, especulava-se sobre como seria a vida cotidiana perpassada pela virtualidade. Naquele momento o surgimento do Second Life, ambiente virtual e tridimensional que simula a vida real e social, estimulava a imaginação, a criatividade e os negócios online. Ao criar uma conta, o usuário poderia criar seu personagem (avatar), adquirir terrenos, construir objetos e edificações, participar de festas e até ganhar dinheiro. Muitas empresas apressaram-se em marcar seu espaço naquele mundo virtual, abrindo filiais e investindo em anúncios com o intuito de sair na frente na ocupação daquela nova realidade. Também os pedagogos viram no Second Life perspectivas animadoras de renovação  da aprendizagem à distância, já que o ambiente em 3D simulava agradavelmente o encontro presencial e o contato pessoal entre educadores e estudantes.

Espaço público e sociabilidade no Second Life

Espaço público e sociabilidade no Second Life

Naquele momento imperava a perspectiva teórica que pressupunha a oposição entre a vida “real” e a “virtual”, sendo esta uma “outra vida”, uma vida paralela, vivida para além da experiência real e cotidiana. O cinema e a literatura, naturalmente, deram suas contribuições na construção dessa: o livro Neuromancer (1984), de William Gibson, trouxe os conceitos de ciberespaço e ciberpunk embalados pela biotecnologia, o pós-humano e o pós-urbano das paisagens virtuais; o filme Matrix, em parte baseado naquele livro, apresentou-nos os perigos da virtualização da vida envolta num mundo de simulacro (Baudelaire, ) e fundamentada no controle tecnológico e alienação do ser humano. Nos dois casos, o mundo virtual foi associado à uma distopia tecnológica que via na virtualidade o capítulo mais recente da dominação do homem pelas máquinas.

No entanto, a cultura digital desenvolveu-se mais no sentido da comunicação e sociabilidade perpassados pelas lulas pela hegemonia que na direção do controle social e político por meio da tecnologia. Um marco dessa situação está no surgimento das redes sociais online, ou Web 2.0, no qual os usuários passaram a ser produtores de conteúdos, apresentando-se como autores e atores sociais participantes de ilimitadas redes de conexões pelas quais as informações trafegam sem fronteiras ou censura (Recuero, 2009). Essa novidade do final dos anos 2000 coincide com a acentuação da mobilidade articulada à conectividade, ou seja, “estamos todos nos movendo”, como afirma Zygmunt Bauman (1999), mas nos movendo conectados à internet por meio dos smartphones, tablets e notebooks conectados à rede 24 horas por dia.

Neste contexto nosso relação com a cidade se vê alterada. William Mitchell (2002) já pontou as influências das interações virtuais na sociedade urbana contemporânea, destacando as transformações espaciais e sociais associadas à ascensão da internet. Segundo Mitchell, temos presenciado mudanças profundas nas cidades e, consequentemente, na sociabilidade. As cidades são construídas por meio de redes que se sobrepõem: a rede de vias públicas se associa à ferrovia, à rede de água e esgoto, à rede elétrica e, finalmente, a rede de comunicação digital; cada etapa dessa altera os relacionamentos humanos e e a vida urbana. Mas há agora uma vida urbana diferente, aumentada, potencializada pelas interações virtuais. A internet vem provocando alterações nos modos das pessoas vivem, trabalham, se deslocam, se divertem, etc. Daí a necessidade de um planejamento urbano apoiado no fluxo de informações e conectividade, já que a cidade é o palco dessa sociabilidade e a principal provedora dessa infra-estrutura de comunicação digital.

A cultura digital articula a vida presencial às informações online em favor da primeira. Investigando a relação entre jovens e música no território das tecnologias digitais, a antropóloga Rossana Reguillo (2012) verificou a importância do Youtube nas festas juvenis, nas quais os repertórios e conhecimentos musicais são compartilhados presencialmente. Esses novos Dj’s amadores oferecem não apenas os sons, mas também as imagens a serem disfrutadas  coletivamente. O uso do Youtube nessas festas coloca no centro da análise uma forma de socialidade presencial mediada pelas tecnologias digitais.

Indignados em reunião na Puerta del Sol, em Madrid, em maio de 2011. FONTE: http://www.larepublica.pe/19-05-2011/espana-elecciones-motivan-la-revolucion-de-los-indignados

Indignados em reunião na Puerta del Sol, em Madrid, em maio de 2011. FONTE: http://www.larepublica.pe/19-05-2011/espana-elecciones-motivan-la-revolucion-de-los-indignados

A vida metropolitana e a conectividade permanente tem alterado também as práticas políticas. Manuel Castells (2013) já descreveu recentemente a importância das redes sociais online na Primavera Árabe, no movimento dos Indignados da Espanha e dos Ocuppys nos EUA e Inglaterra. Para ele esses movimentos são virais, amplamente espontâneos, ancorados no poder soberano das imagens (especialmente no Youtube) e na ocupação dos espaços urbanos, assim como no compartilhamento de experiências por meio da internet.

Assim como no movimento estudantil do Chile (Rosenmann, 2012) ou entre os indignados da Espanha (Feixa, 2013; Rosenmann, 2012), também em São Paulo os jovens do Ocupa Sampa de 2011 não têm dúvidas sobre a importância das redes sociais online para a constituição dos movimentos políticos, mas para eles a questão central dessas novas mobilizações continua ancorada na ocupação dos espaços públicos, nas relações presenciais e dos corpos nas ruas. Como já salientou Martín-Barbero, temos presenciado por meio desses movimentos um processo de reterritorialização, uma valorização dos encontros presenciais nos espaços urbanos: “en las grandes ciudades el uso de las redes electrónicas construyen grupos que, virtuales en su nacimiento, acaban territorializándose, pasando de la conexión al encuentro, y del encuentro a la acción” (Martín-Barbero, 2003: 379). Mas essa reterritorialização acontece em novas bases, já que se trata da construção e experimentação coletiva de um “novo espaço público, o espaço em rede, situado entre os espaços digital e urbano, é um espaço de comunicação autônoma” (Castells, 2013: 16). Esse novo espaço é híbrido, situa-se entre o espaço público e as redes sociais, e vem sendo construído a partir da ocupação das ruas e praças e com o uso das redes sociais.

Assim, ao invés de se pensar na oposição entre o real e o virtual, cabe agora refletirmos sobre as articulações entre a vida online e a off-line, entre a vida presencial e os relacionamentos e conhecimentos determinados pela internet. De qualquer forma, no lugar das distopias colocadas pelas vozes críticas à cultura digital, vemos emergir, com a internet e as redes sociais online, a construção de utopias que recolocam valores libertários e de autonomia, propõem questionamentos sobre a vida e o futuro das cidades, deslocam os poderes da indústria cultural e das mídias tradicionais, questionam os poderes políticos instituídos, experimentam novas formas de organização e participação, constroem outras estéticas que alimentam novas éticas.

Material promocional dos Indignados da Espanha disponibilizado na internet para download. FONTE: http://www.democraciarealya.es/promocion/material-oficial/

Material promocional dos Indignados da Espanha disponibilizado na internet para download. FONTE: http://www.democraciarealya.es/promocion/material-oficial/

 

 

 

 

Rerefências

 

BAUMAN, Zigmunt. “Turistas e vagabundos”. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro, Zahar, 1999, pp. 85-110.

CASTELLS, Manoel. Redes de comunicação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FEIXA, Carles. “Crónicas del 15M: Del campamento al ágora”. Em Carles Feixa y Jordi Nofre (eds.). #GeneraciónIndignada: Topías y Utopías del 15M. España: Milenio Publicaciones, 2013.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. “Identidad, tecnicidade, alteridad: apuntes para re-trazar el mapa nocturno de nuestras culturas”. Revista Iberoamericana, Vol. LXIX, num. 203, abril-junio, 2003, 367-387.

MITCHELL, William. E-topia: a vida urbana, mas não como a conhecemos. São Paulo: Senac, 2002.

RECUERO, Raquel. Redes sociais na Internet. Porto Alegre, Sulina, 2009. Disponível em http://www.ufrgs.br/limc/PDFs/redes_sociais.pdf

REGUILLO, Rossana. “Navegaciones errantes. De música, jóvenes y redes: de Facebook a Youtube y viceversa”.  Nueva época, núm. 18, julio-diciembre, 2012, 135-171. (anexo)

ROSENMANN, Marcos Roitman. Los indignados: el rescate de la política. Madrid/España: Ediciones Akal, 2012.

 

 

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