A esfera pública e a participação política na internet
Hoje em dia, o conceito de democracia conta com uma gama enorme de conotações, que serve para definir os mais variados arranjos políticos. Ernesto Laclau (2005) chega a afirmar que o conceito em si se converteu em um significante vazio, ou seja, em um significante sem significado, algo possuidor de tantos significados que se encontra esvaziado de significação efetiva.
O debate sobre o fortalecimento da democracia gira em torno do uso massificado das novas tecnologias, principalmente da internet.
No que se refere ao viés participativo ou deliberativo deste sistema político, encontramos algumas ações que conseguem fomentar a complementaridade entre democracia, participação e internet; um bom exemplo é o Orçamento Participativo, conhecido instrumento de participação popular em que os cidadãos podem decidir como se dará a aplicação de uma determinada parcela do orçamento municipal. Hoje, já existem versões digitais do Orçamento Participativo em todo mundo e também em algumas cidades do Brasil, como Belo Horizonte, Recife e Ipatinga. No entanto, uma questão se coloca: até que ponto a esfera pública na internet pode ser considerada real?
Neste ponto, existem duas frentes ideológicas em que se dividem os teóricos que se propuseram a estudar o assunto. Grosso modo, eles podem ser separados em otimistas e cautelosos.
O espanhol Manuel Castells (2001), que enxerga com bons olhos o papel da internet na sociedade contemporânea, acredita que o ciberespaço se tornou uma “ágora eletrônica global”, de onde a diversidade do descontentamento humano explode em uma cacofonia de acentos. Para ele, a internet não é simplesmente uma tecnologia, é um meio de comunicação e constitui a infraestrutura material de uma forma organizativa concreta, caracterizada como “a rede”. A internet se converte, desta forma, em um componente indispensável para os vários movimentos sociais, com suas inúmeras reivindicações, que estão surgindo na sociedade atual.
Na mesma linha, Rocio Rueda Ortiz (2008) afirma que as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), além de democratizar o uso da internet, a divulgação cultural e oferecer informação para todos, tem a capacidade de adormecer e mobilizar grupos sociais por meio da comunicação de massas, onde se encontram as mais variadas correntes de opinião.
Por outro lado, existem autores mais receosos em relação à função desempenhada pela internet dentro do sistema político vigente em nossa sociedade. Uma das principais críticas se refere ao fato de a internet ter uma suposta dificuldade em territorializar os fluxos discursivos. Sendo assim, o discurso se tornaria mais comprometido com projetos de atores primordialmente locais. Mesmo com uma interação menos filtrada pelos detentores do controle dos recursos midiáticos tradicionais, o caos da web, onde geralmente são travados os debates, fragilizaria seu status de esfera pública.
Segundo o sociólogo Dominique Wolton (2001), não existem meios de comunicação social sem a representação a priori de um público. Para ele, no essencial, a internet não é um meio de comunicação social, é um formidável sistema de transmissão e acesso a um número incalculável de informações.
A cautela de Wolton pode ser justificada pela exclusão digital, pela forma lúdica que a internet é utilizada por muitos, pela preponderância de determinadas faixas etárias na rede e até mesmo pela dúvida constante de a internet poder ser realmente um espaço de debates civilizados e frutíferos.
O fortalecimento da democracia por meio do uso da internet, pelo menos no Brasil, parece esbarrar em questões fundamentais, como o tamanho do acesso aos meios eletrônicos. Em países em que a inclusão digital atingiu um patamar satisfatório, como o Japão, por exemplo, o principal problema é a falta de desejo dos próprios cidadãos em envolverem-se nos assuntos públicos, considerados irrelevantes por muitos.
Portanto, antes de uma mudança técnica, necessária ao Brasil, se torna fundamental uma mudança cultural, crucial não somente ao nosso país. Pois, como afirma Clay Shirky (2011), a cultura não é apenas um aglomerado de comportamentos individuais e sim um conjunto de normas e comportamentos aceitos coletivamente num grupo.
Porém os impeditivos parecem se enfileirar quando tentamos encontrar uma posição política ideal para a internet. A massificação e a acriticidade, típicas dos conteúdos que circulam na web, colocam em dúvida a capacidade de abertura de espaços realmente vigorosos para o debate.
Claro está que a falta de conhecimento, seja ele político ou mesmo comunicacional, trabalha contra o fortalecimento democrático na sociedade moderna, que poderia ser suscitado pelo enorme alcance da internet. Neste ponto, recorremos mais uma vez a Shirky, que diz que aumentar o número de coisas que você tem pode ser útil, mas aumentar sua quantidade de conhecimento pode ser transformador. Para ele, o conhecimento, ao contrário da informação, é uma característica humana; pode haver informação que ninguém saiba, mas não pode haver conhecimento sem que alguém o saiba.
Sendo assim, podemos enxergar a internet como uma ferramenta capaz de fomentar a transformação política, uma vez que, como afirma Ortiz, a web é capaz de influenciar a opinião pública por meio de todo conteúdo que se move massivamente por ela, nos mais variados meios temáticos. No entanto, faltam atores realmente capacitados para levar esta mudança adiante.
Qual seria o caminho ideal? As interações virtuais ainda geram mais dúvidas do que oferecem respostas. A liberdade da rede abre espaço para os mais variados tipos de discursos, mas também impede que tais discursos adquiram um caráter, supostamente, profissional. Caráter este que, segundo Sharky, ainda funciona como objeção à difusão do conhecimento.
Pelo menos no Brasil, a inclusão digital se mostra fundamental, antes que qualquer discussão de conteúdo seja proposta. Nos moldes atuais, trabalhar pelo fortalecimento da democracia por meio da internet poderia significar diminuir ainda mais a representatividade dos grupos economicamente e, por que não, politicamente desfavorecidos. Esta óbvia segmentação em nossa sociedade pode causar um efeito inverso ao pensado por qualquer um que planeje abrir espaço para um maior número de pessoas no debate público.
Quando o déficit técnico for coisa do passado, estará aberto o debate em torno do conteúdo das reivindicações e de sua viabilidade ou mesmo veracidade. Superado o obstáculo inicial, nos confrontaremos com o verdadeiro problema, de ver até que ponto as pessoas estão realmente dispostas a participar do debate político.
Os usos da internet precisarão ser modificados para que tenhamos uma discussão prolífica e o questionamento feito por Clay Shirky poderá, finalmente, ser posto à prova: quão capazes seremos de tirar proveito do excedente cognitivo para produzir valor cívico real?
Bibliografia
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2003, PP. 13-55.
LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
RUEDA ORTIZ, Rocio. Cibercultura: metáforas, prácticas sociales e colectivos en red. Nómadas (Col), num 28, abril, 2008, pp. 8-20. Universidad Central, Bogotá, Colombia. Disponível em http://www.ucentral.edu.co/movil/index.php?option=com_content&view=article&id=557&Itemid=2456
SHIRKY, Clay. “Cultura”. A cultura da participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 119-143.
WOLTON, Dominique. E depois da internet? Para uma teoria crítica dos novos medias. Portugal: Difel, 2001.