Cultura digital, sociedade e política

06/07/2014

Software Livre e o capital digital

Filed under: Juliane Duarte — Tags:, , , — Juliane Duarte Prado @ 23:48

Software Livre e o capital digital

Os hackers1 estão presentes desde o início da internet, tanto que são parte constitutiva de sua estrutura técnica e das diretrizes da sua maior característica: a abertura, em diversos aspectos. Alguns grupos dentre esses experts na informática, após a popularização do computador para utilização doméstica, trataram rapidamente se apropriar dos recursos técnicos da programação, também novidade em meados 1980, para criar programas de computador comercializáveis, chamados softwares proprietários, protegidos por leis de propriedade intelectual e copyrights, a partir de demandas de mercado e possibilidades da nova tecnologia,inaugurando aquela que seria uma geração de jovens empreendedores milionários2 e diversas das empresas de sucesso conhecidas ainda hoje. O que possibilitou essas iniciativas inovadoras, além do faro comercial de alguns, foi a chamada “cultura hacker”, com suas premissas de comunicação aberta e transparente, comunicação livre e horizontal3, o conhecimento poderia ser (e de fato foi) compartilhado com muito mais eficiência (apesar da iniciativa ser eliminada em detrimento do lucro, em muitos casos), rendendo diversos frutos, tanto programas quanto iniciativas que se estenderam ao longo da internet nos anos seguintes.

Uma das iniciativas com elementos da cultura hacker que se mostra mais ativa atualmente é o chamado movimento de “Software livre”, que teve a primeira experiência em 1984 com RIchard Stallman, técnico do MIT que sozinho deu origem a essa iniciativa, por conta da iminência de fechamento (Reclamação de direitos autorais) da empresa ATT sobre o Sistema Operacional UNIX, além da contrapartida ao copyright, denominadocopyleft: basicamente, o direito de uso, cópia e distribuição de um produto (nesse caso, um programa) com a condição de fazer referência à fonte e manter a abertura do produto para futuros aprimoramentos. Dessa ideia, Stallman desenvolveu o GNU (GNU is nos UNIX), parte de um Sistema Operacional, derivado do UNIX e distribuído por copyleft4. Algum tempo depois, em 1991, Linus Torvalds, na época um estudante de 22 anos, pretendia utilizar o UNIX em seu computador, até então incompatível, solicitou na internet ideias e ajuda para programar um sistema operacional novo, depois chamado de Linux e que, juntamente com o GNU, se tornou GNU/Linux, um sistema Operacional completo, funcional e até então superior, tecnicamente, aos demais da época.

A partir dessas duas iniciativas, cria-se uma divisão, de certa forma entre o olhar “técnico” e “filosófico” da questão do Software Livre: Erica Raymond, posteriormente à iniciativa de Torvalds e como distinção à Fundação do Software Livre (ou Free Software Foundation, em inglês), cria o conceito de Software de Fonte Aberta (ou Open Source Software), ou seja, a crença de que a comunicação transparente, o espírito comunitário de colaboração eabrir o código-fonte (o “esqueleto” do programa) – chamado “método bazar” – é uma iniciativa tecnicamente superior ao “método catedral”, adotado pelas grandes empresas, que consiste em enclausurar informações, manter os programadores controlados, sob uma estrutura hierárquica rígida, pressão e supervisão constante. Nessa concepção o caráter motivacional, o sentido da colaboração e transparência – presente no movimento de software livre – é perdido, permanece a justificativa pragmática, que nem mesmo incentiva o uso de licenças abertas, mas exige apenas que a fonte primária seja citada.. Ainda assim é a principal motivação é o caráter social da construção.

Para além da discussão sobre superioridade de um ou outro modelo, ambos demonstram a possibilidade de trabalho coordenado conjunto, fora do ambiente da empresa, de forma voluntária e com motivações alheias ao dinheiro (não que esse elemento esteja descartado). Com o aumento da tecnologia e seu emprego na indústria e demais setores da sociedade, as pessoas tem tido mais tempo livre, que antes era consumido pela televisão e agora, com as redes digitais, pode ser utilizado de forma mais criativa, ou mesmo participativa, para projetos conjuntos e / ou de interesse coletivo, como defende Clay Shirky5. Ele utiliza o conceito de “excedente cognitivo” para designar a quantidade conjunta de tempo livre que a sociedade dispõe na atualidade, que poderia, e efetivamente já está sendo utilizado, não mais para assistir TV, mas, a partir das novas possibilidades de coordenação proporcionadas pela internet (mídias digitais sociais, comunicação instantânea, etc), a realização de trabalho socialmente relevante. Um dos aspectos para o sucesso dessas iniciativas é a cultura do grupo: estar inserido em um grupo que valoriza o compartilhamento de informações e a construção coletiva do conhecimento é um incentivo para essas práticas, é recompensador para aqueles que partilham desses valores e traz resultados muito mais concretos do que o enclausuramento de informações6.

Os hackers mais ativos no desenvolvimento do Software livre, em geral, possuem uma ética própria que envolve, além da cultura do compartilhamento, a valorização da autonomia e o desrespeito a autoridades muito rígidas7, além de uma rede colaborativa que age em torno de projetos comuns, onde eles discutem, coordenam o trabalho e chegam a consenso (que em certos momentos não é possível, por motivos técnicos e/ou ideológicos; é quando ocorre uma ruptura no grupo, em que uma parte continua no projeto e a outra parte dá inicio a outro, muitas vezes semelhante ao anterior. Por isso existem tantas distribuições de Sistemas Operacionais disponíveis).

 

linux

 

O Software livre, enquanto iniciativa, é muito utilizado por movimentos sociais e jovens estudantes, críticos do sistema capitalista atual, principalmente após as denuncias de espionagem por parte dos EUA, cresceu exponencialmente a desconfiança da sociedade sobre o destino de suas informações pessoais, que são constantemente solicitadas por grandes empresas da internet. O Movimento de Software Livre sempre teve e mantém uma grande preocupação com a comercialização da internet e a interferência do governo nesse processo, considerando os clássicos da literatura 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de A. Huxley, que previam realidades de total controle por parte dos governos. O que ocorre na realidade é a comercialização de dados dos usuários, para fins comerciais e na contrapartida, diversos movimentos atuantes no sentido de evitar essa interferência, garantindo o direito de privacidade. Também desde os primórdios da internet, algumas organizações (civis)8 fiscalizam as empresas de forma que elas não possam, de forma alguma, privatizar e eliminar qualquer um dos seus elementos primordiais: liberdade, abertura, descentralização.

A cultura hacker, exemplificada em seu potencial máximo pelo movimento de Software Livre, desde sua origem já passou por diversos desafios, entre a iniciativa de código aberto, a atual diminuição do numero de adeptos, em relação ao software proprietário (muitas vezes preferido pelos usuários). A distribuição Linux mais famosa atualmente, Ubuntu, tem feito acordos comerciais bastante duvidosos em relação à filosofia de seus usuários, ou mesmo da ética do Software livre: Tem mantido parte de seu desenvolvimento em segredo (tática de software proprietário, nem um pouco participativa) e fornece dados de pesquisa dos usuários para empresas como Amazon utilizarem em publicidade dirigida (conhecido com spyware)9. Esse e outros desafios mostram que a liberdade promovida pelo software livre muitas vezes entra em conflito com os interesses comerciais das maiores empresas do ramo, ou mesmo aquelas que querem adentrar esse mercado, necessitam fazer algumas concessões ideológicas. Ainda assim, o Software livre segue sendo desenvolvido, largamente utilizado pela juventude contra hegemônica como ferramenta antiespionagem.

Bibliografia

AnahuacGeração Ubuntu: a morte do movimento Software Livre no Brasil. http://www.anahuac.eu/?p=335 Acesso em 19 de maio de 2014

Castells, Manuel. A galáxia internet: Reflexões sobre internet, negócios e sociedade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 2004

Himanen, Pekka. A ética dos hackers e o espírito da era da informação.Rio de Janeiro, Editora Campus, 2001

Raymond, Eric. “Como ser um hacker” https://linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html Acessado em 18 de maio de 2014

Shirky, Clay. A cultura da participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro, Zahar, 2011

World Wide Web Consortium: Quem somos. http://www.w3c.br/Sobre Acesso em 19 de maio de 2014

 

 

1 Segundo Eric Raymond: “Hackers resolvem problemas e constróem coisas, e acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que realmente acreditar nessa atitude”. https://linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html Acessado em 18 de maio de 2014

2 Denominada por M. Castells como “cultura empreendedora”, uma das quatro vertentes constituintes da internet. Castells (2004), pag 55-56

3 Sobre a cultura hacker, ver Castells (2004), pag 60

4 Castells (2004) pag 30-31

5 Shirky (2011) pag 14 -15

6 Vide exemplo dos alquimistas e a Universidade invisível. Shirky (2011) pag 123 – 126

7 Himanen (2001) pag 20-21

8 um exemplo de organização é a W3C (World Wide Web Consortium), organização internacional liderada por Tim Berners-Lee e desenvolve diretrizes a nível internacional para a internet. http://www.w3c.br/Sobre

9 http://www.anahuac.eu/?p=335 Acesso em 19 de maio de 2014

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