Cultura digital, sociedade e política

17/06/2014

Persepolis 2.0: Quadrinhos e ciberativismo

Fonte: flickr.com

Fonte: flickr.com

O espaço virtual está se tornando um espaço comum a toda a humanidade, onde as distâncias físicas tornaram-se irrelevantes, propiciando a interação e a troca de informações entre os indivíduos, o que é muito importante para a organização de movimentos de luta política, através de redes como o Twitter, Facebook e o Youtube. Pois, segundo Manoel Castells em Redes de Indignação e Esperança os movimentos sociais se manifestam na internet, tornando-a numa espécie de ágora eletrônica onde através dela é possível denunciar as barbaridades cometidas por governos autoritários, como também convocar mais manifestantes para o embate e a ocupação de espaços públicos, as redes sociais foram muito úteis nas recentes manifestações nos países árabes, na Europa, nos EUA, e também em São Paulo.

Mas o que as histórias em quadrinhos têm haver com manifestações recentes pelo mundo e com a internet? Bem, antes do início da Primavera Árabe em 2010 com o intuito de derrubar os regimes autoritários que governam há décadas, do movimento do Los Indignados na Espanha e do Occupy Wall Street que segundo David Harvey pretendem retomar o controle do poder ao povo tirando das mãos dos magnatas que controlam o governo (Harvey, 2013), a internet já vinha sendo usada como forma de manifestação política no Irã desde 2009, e uma dessas formas foi através da adaptação da série de histórias em quadrinhos Persépolis, onde dois jovens filhos de iranianos exilados adaptaram os balões das histórias para um enredo que denúncia a falta de direitos civis do regime do ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, disponibilizando-as na rede, como por exemplo no site flickr.com.
Segundo Nildo Viana em sua obra Quadrinhos e Crítica Social, O Universo Ficcional de Ferdinando, as HQ são como uma expressão figurativa da realidade, através do processo de criação dos autores que as tratam como manifestação da realidade social em um universo ficcional. Podendo a partir daí retirar elementos sócio-políticos e adaptá-los aos quadrinhos.

Fonte: flickr.com

Fonte: flickr.com

O estilo graphic novel talvez seja o tipo de HQ que mais vem ganhando espaço em meio à discussão política, a HQ Persépolis em sua versão original, a autora retrata a Revolução Islâmica de 1979, a partir de uma personagem feminina que vivência eventos como a queda do regime do Xá, e a guerra entre o Irã e o Iraque. A adaptação atual feita por esses dois jovens que se denominam Payman e Sina, retrata o contexto político de 2009 onde o presidente Mahmoud Ahmadinejad foi reeleito sem que não houvesse fortes protestos de opositores que denunciavam irregularidades nessa eleição, a história mostra as manifestações contra o governo, e termina com a morte da jovem Neda Agha-Soltan durante os protestos, tornando-se um símbolo das manifestações. Ao fim também se encontra um pedido dos autores para que divulguem a HQ por meio do Facebook, Twitter e e-mail. Payman e Sina reeditaram os diálogos trazendo-os para as questões atuais criando a HQ Persépolis 2.0, com o objetivo de torná-la disponível para todo o mundo através da internet, já que o governo iraniano bloqueou uma série de blogs e páginas que lhe faziam oposição, restando às redes sociais que se tornaram o veículo de propagação dessa HQ.
Junto a isso é notável observar a presença da chamada cultura da internet descrita por Castells, em a Galáxia da Internet, que surgiu a partir do encontro dos jovens universitários na época da efervescência da contra-cultura com os aparatos tecnológicos de uso militar, foi desenvolvida para ser um espaço de criação coletiva e internacional, sendo os hackers os precursores do ativismo virtual, mas a consolidação dessa cultura ocorreu quando a internet popularizou-se por voltada década de 1990, abrindo acesso a uma grande parcela de usuários comuns, sem muita instrução sobre ela. A rede possibilitou o surgimento de um novo ambiente onde os indivíduos podem interagir em busca de uma causa social, substituindo os panfletos por e-mails e compartilhamentos como fizeram Payman e Sina e os demais que se solidarizaram.
A autora da versão original Marjane Satrapi que vive na França e é uma forte ativista pelos direitos civis no Irã, não se importou com a alteração feita em sua obra, dando autorização para que continuassem a criar um enredo que denunciava as irregularidades nas eleições de 2009, Payman e Sina que vivem em Xangai e receberam apoio através da internet para a tradução em diversas línguas, fato que lembra o que Castells discorre em Redes de Indignação e Esperança definindo a rede como um espaço que se constitui pela comunicação autônoma e livre possibilitando um contra-poder pelos movimentos sociais, assim como a divulgação de Persépolis 2.0 que ganhou apoio através de várias páginas na rede.
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Bibliografia:
CASTELLS, Manoel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.
___________. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
HARVEY, David. Os rebeldes na rua: o partido de Wall Street encontra sua nêmesis. In: Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo, Boitempo, 2013.
VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.

Sites:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2707200916.htm

Página acessada em 25 de maio de 2014.

https://www.flickr.com/photos/30950471@N03/sets/72157620466531333/

Página acessada em 25 de maio de 2014.

02/06/2014

As relações afetivas na Era Digital

Uma reflexão a partir do filme “Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual” de Gustavo Taretto

 

Por Maria Fernanda Bienhachewski da Costa Portela

 

A cultura digital e a influência da Internet nas relações cotidianas foi tema do filme argentino “Medianeras”, de 2011 do diretor Gustavo Taretto. O longa metragem faz uma relação entre as relações afetivas na cultura digital e a arquitetura de Buenos Aires, que cresce desproporcionalmente e de forma irregular, disponibilizando uma série de pequenas quitinetes isoladas. O título do filme significa a parede intermediária entre os edifícios, que sem janelas, comportam propagandas e outdoors.

Dois jovens, enclausurados em seus pequenos apartamentos em Buenos Aires sofrem solitários diante de seus computadores.  Martin, um web designer e Mariana, uma arquiteta mal sucedida, que ganha a vida elaborando vitrines são os personagens dessa trama que retrata a realidade das relações afetivas nos dias de hoje.

 

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“A internet me aproximou do mundo mas me afastou da vida”, frase dita pelo personagem Martin, que sofre de uma série de transtornos psiquiátricos como depressão e fobia de multidões, soa de forma extremamente familiar e serve para que possamos refletir sobre como essa cultura digital impossibilita a vivência de experiências e sensações da vida humana.

De que modo a Internet permitiu a aproximação e/ou o afastamento entre as pessoas? Com a promessa de um acesso ilimitado a uma quantidade astronômica de dados e informações, a Internet prometia aproximar ainda mais os indivíduos, que através dela podem estar conectados 24 horas através de sites, tal como as redes sociais ou aplicativos como o Skype que realiza ligações internacionais via computador sem custo ou entre aparelhos telefônicos a pequenos preços. Tudo isso que previa uma maior aproximação, pode de alguma forma, ter ocasionado o afastamento gradual das pessoas de suas relações afetivas. Se de algum modo a Internet permite o contato de forma rápida e eficaz, ela também finge suprir a necessidade do encontro propriamente dito, do palpável, do físico.

Como é dito no filme, hoje é possível realizar centenas de atividades via web, tal como realizar as mais diversas compras, assistir a filmes e séries, ler e escutar músicas, realizar transações bancárias etc. Mas de que modo isso não passa a interferir na vida das pessoas, que fechadas dentro de seus apartamentos e diante de suas telas, deixam de sentir necessidade de sair de suas residências e conviver socialmente. De que modo a Internet não contribui para uma espécie de Sociopatia que leva a situações de depressão e solidão? E como a distribuição dos apartamentos de forma caótica e excessiva também contribui para isso?

 Ambos os personagens, desiludidos amorosamente, com dificuldade de voltar a se relacionar se sentem ainda mais fragilizados diante do que o filme denomina de “cultura do inquilino”, em que indivíduos preenchem casas e apartamentos irregulares e têm dificuldade em se reconhecer como individualidade diante da multidão. O uso da metáfora do personagem do livro “Onde está o Wally” que é tido como personagem preferido de Mariana, e que está sempre encoberto diante de uma multidão e que ela assume nunca tê-lo encontrado na cidade, é um exemplo de como a Internet impulsiona uma postura de excesso e ao mesmo tempo de perda da individualidade das pessoas, que através de seus computadores têm a ilusão de estar diante do mundo, mas cada vez mais acanhados diante da vida.

O filme, portanto, busca trazer uma reflexão de que apesar da Internet propiciar uma série de novas experiências e facilitar a realização de uma série de atividades cotidianas, o que realmente preenche os indivíduos, lhes trazendo sentimentos de realização e felicidade não podem ser substituídos pela vivência digital. A necessidade de relacionar-se, de estar próximo fisicamente do outro não é suprida pelo uso da Internet, sendo, na realidade, um grande obstáculo na hora de se reconhecer e na descoberta do outro.

 

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A pesquisadora Raquel Recuero no livro “ Redes sociais na Internet” busca compreender de que forma da Internet vêm alternando as relações sociais contemporâneas. Trata-se de alterações complexas e em velocidade acelerada que precisam ser analisadas com cuidado. No entanto, a tecnologia não pode ser vista como algo externo a sociedade, pois se tornou parte integrante dela. Apesar do tom crítico colocado pelo longa-metragem, a Internet não traz apenas malefícios para as interações sociais, mas é um instrumento que pode ser utilizado e depende da postura do internauta no seu uso, ou seja, a Internet por si só não pode ser responsabilizada por um afastamento e/ou aproximação entre os indivíduos. Segundo Recuero, a Internet deve ser estudada não só como tecnologia mas, levando em consideração o conjunto de aspectos individuais, sociais e também tecnológicos.

A internet alterou a forma dos indivíduos de se relacionar, organizar, informar, e se reconhecer. A questão do tempo foi alterada, hoje com o uso da Internet é possível trocar informações, estabelecer diálogos e publicar notícias em um outro nível de velocidade, de maneira instantânea. Essa capacidade de se conectar ao mundo em questão de segundos é uma das grandes responsáveis pela ilusão de se sentir sempre presente, ou melhor, on-line. E redes sociais, ou seja, redes de conexão foram sendo criadas dentro de cada computador e diante de cada tela, um internauta conectado. A sensação de estar presente, de participar dessa rede se confunde com a ideia de estar presente em um lugar propriamente físico, porque a rede social passou a ser também um local de interação, mesmo que virtualmente. As pessoas passam a se apropriar da rede como local de encontro, de troca de mensagens, informações, imagens, sons, etc. Portanto, a Internet engloba um sistema complexo, no qual estão presentes relações de âmbito tecno-científico como também coletivas e individuais no que diz respeito as relações pessoais entre internautas.

Segundo a pesquisadora, a Internet proporciona meios para interação e sociabilização através da comunicação virtual fornecida pelo uso do computador, essas relações se dão na rede social que a autora define como uma estrutura, na qual, estão os atores (pessoas e grupos, aqueles que estão diante dos computadores) e suas conexões (interações). Os atores são representações, ou seja, identidades construídas para serem utilizadas no que ela chama de ciberespaço, local no qual, essas relações virtuais ocorrem. Essa representação pode ser tanto um usuário (um perfil em alguma rede social), como também um site, blog ou qualquer página que represente o internauta. Portanto, há no meio virtual uma necessidade de criação de uma espécie de personagem que será a faceta utilizada pela pessoa que estará diante da tela. No filme, Mariana e Martin trocam mensagens via uma espécie de bate-papo, sem saber que estão tão próximos fisicamente um do outro, que são vizinhos. Portanto, a Internet pode favorecer a construção de inúmeras facetas, diversos perfis que podem a longo prazo nos afastar de nossa verdadeira identidade, ou servir como apoio na hora de estabelecer relações e diálogos via web. Dessa forma, podemos pensar que os atores são os instrumentos representativos utilizados pelos internautas para se apropriarem do seu próprio território no ciberespaço. Segundo Recuero,

 ”essas apropriações funcionam como uma presença do “eu” no ciberespaço, um espaço privado e, ao mesmo tempo, público. Essa individualização dessa expressão, de alguém “que fala” através desse espaço é que permite que as redes sociais sejam expressas na Internet.” (RECUERO, Raquel, 2009, p. 27).

Dessa forma, há uma necessidade de expressão juntamente e paradoxalmente com uma necessidade de ocultar-se diante de uma persona criada e recriada para interações virtuais. Dessa forma, podemos perceber que há uma crescente tendência individualista, na qual, a necessidade de se expor ou se ocultar pode levar a uma postura de isolamento e/ou insegurança quando essas pessoas precisam estar diante de situações cotidianas do “cara-a-cara”.

A comunicação via web é dada através dessa troca entre atores mediada pelo uso do computador. Quando ambos internautas estão on-line é quando virtualmente estão presentes naquela interação, em que mensagens e informações podem ser trocadas imediatamente, em tempo real. No longa-metragem de Gustavo Tarreto, a medida que a luz é desligada e os computadores se desconectam, os personagens não podem mais manter o contato estabelecido. Esse tipo de comunicação entre internautas, Recuero chama de comunicação síncrona. Já as mensagens trocadas via e-mail, ou fóruns de conversa, como mensagens off-line são segundo a pesquisadora, assíncronas, quando não há a expectativa de uma resposta imediata.

As relações construídas pelos atores sociais no ciberespaço podem ser observadas entre os personagens do filme, no entanto, se trata de uma comunicação em que eles não tem consciência de quem realmente está diante do monitor. Portanto, se pode perceber que a Internet pode propiciar momentos de aproximação e afastamento dos indivíduos em suas relações sociais. Ou seja, no quesito distância, a web pode ser uma aliada para amenizar a sensação de afastamento de duas pessoas localizadas em locais distantes, mas também, pode se tornar um obstáculo na hora de iniciar novos relacionamentos, pois dependendo de como o indivíduo se apropria de suas ferramentas, ela pode dificultar momentos em que é preciso se expressar, se expor, entrar em contato consigo e com o outro verdadeiramente, sem qualquer tipo de mediação virtual.

 

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Referências Bibliográficas/ Audiovisuais

RECUERO, Raquel. “ Redes sociais da Internet”. Porto Alegre, 2009. p. 14 a 44.

TARRETO, Gustavo. “ Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual” (longa-metragem). Buenos Aires, 2011.

 

 

01/06/2014

Crowdfunding – A Vaquinha da Modernidade

Por Jimmy M. Pitondo

Entre as muitas válvulas de escape em relação aos meios tradicionais que o uso da internet proporciona, podemos enxergar no Crowdfunding um dos fenômenos que mais crescem com as transformações de mercado engendradas por esse uso. O financiamento coletivo funciona como uma rota alternativa para todos que possuem ideias criativas e elaboram projetos artísticos, tecnológicos, acadêmicos, enfim, projetos para os quais seus criadores não têm dinheiro necessário para colocar em prática, ou seja, é uma forma interessante de driblar o empréstimo bancário ou o patrocínio das grandes produtoras, ainda que esse financiamento também passe pela mediação de organizações como: Catarse, Kickstarter, Ulule, KissKissBankBank, entre inúmeras outras. Assim, as famosas ‘‘vaquinhas’’ tão próximas ao nosso cotidiano, organizadas por grupos a fim de levantar fundos para qualquer objetivo, ganham uma nova roupagem no mundo virtual e um valor cívico real.

É o pesquisador estadunidense Clay Shirky (2011) quem nos mostra como as relações de mercado, entre outras formas possíveis, são um tipo de norma cultural que auxiliam as trocas de coisas ou informações entre os indivíduos. Dentro dessa arquitetura descentralizada da internet, essas normas culturais são modificadas ao longo do desenvolvimento de novas formas de relações mercadológicas. Agora nos cabe levantar algumas questões sobre o funcionamento dessas trocas nesse novo caminho, suas principais vantagens e, naturalmente, problemas em relação ao seu uso.

Primeiramente o financiamento coletivo esteve ligado ao cinema. Se lançarmos um olhar retrospectivo no tempo, especificamente em 1959, vamos encontrar John Cassavetes buscando o apoio dos nova-iorquinos para financiar seu filme Shadows, já nessa primeira tentativa a vaquinha obteve êxito. Mas há 50 anos quais eram os meios que John possuía? Eles estavam no rádio, nos jornais e no boca-a-boca. Já hoje, além dessa prática encontrar-se mais ligada ao campo da música e da tecnologia, nossos contemporâneos Cassavetes atuam principalmente nas redes sociais online, como Twitter ou FaceBook, onde em tempo real é possível estimular a curiosidade e o altruísmo dos internautas, dos seus amigos e amigos dos amigos em uma escala global. Essa dinâmica se afirma nessa nova cultura de comunicação, compartilhamento e difusão rápida de ideias. Os movimentos surgem e espalham-se por contágio através de redes de comunicação, seu impacto se evidencia quando olhamos a forma pela qual o poder se exerce na comunicação e na alternância entre várias redes, vemos então como esses movimentos carregam a dynamis necessária para transformações sociais, pois abrem novos espaços onde há transformação e superação de interesses e valores hegemônicos.

Manuel Castells (2013) explora essa questão de transformação social através dos movimentos sociais conectados em rede. Mesmo não sendo um movimento social propriamente dito, a prática do Crowdfunding surge como uma forma de contrapoder multimodal, por isso se torna possível aproveitar suas ideias sobre como essa organização em redes poder se tornar responsável por significativas mudanças sociais. Através da ampliação do alcance da comunicação que a internet proporciona, o surgimento de formas de financiamento coletivo pode então ser interpretado como um contrapoder em relação as grandes gravadoras ou aos órgãos de financiamento de pesquisa. Seu crescimento é exponencial, uma vez que ‘‘A constituição de redes é operada pelo ato da comunicação. Comunicação é o processo de compartilhar significado pela troca de informações’’ (CASTELLS. 2013:11)

Dentro desse universo de trocas, o idealizador do projeto é obrigado a ir além de sua função original, pois, para que obtenha sucesso em sua busca por investimentos é necessário saber interagir nas redes sociais online e ter capacidade de manter uma relação entre a rede que está inserido e as inúmeras outras adjacentes, função essa para a qual nem todos têm habilidades. Assim, por exemplo, ao invés do artista se limitar a fazer sua arte, deve encarnar o papel de empresário e demonstrar habilidade na comunicação alternativa, o que muitas vezes faz com que o mais habilidoso em marketing viral obtenha maior espaço de visibilidade, não necessariamente sendo o mais talentoso. Compreender o pensamento de Dênis Moraes (2007) acerca da comunicação alternativa é de suma importância para desenvolver essas habilidades necessárias:

A idéia de alternatividade fundamenta-se numa dupla inserção ideológica do projeto comunicacional: alinhamento com processos de mudança social: e o combate sistemático ao sistema hegemônico. Pressupõe assumir visões transformadoras na relação com os leitores e a sociedade em geral, nos métodos de gestão, nas formas de financiamento e, sobretudo, na interpretação dos fatos social. (MORAES. 2007:4)

Vejamos alguns dados para materializar o impacto no sistema hegemônico. O kickstarter fez um levantamento em 2013, seus dados indicam um investimento de mais de 400 milhões de dólares entre 3 milhões de internautas do mundo todo. Sendo quase 20 mil projetos bem sucedidos, entre eles, o Oculos Rift recentemente comprado pelo FaceBook por 2 bilhões de dólares. O que nos leva a inúmeras questões. André Senna, pesquisador do Atos – Comunicação e consumo: estudos de recepção e ética da ESPM, nos diz: ‘‘É interessante olharmos o caso do Oculus Rift. Ele foi financiado no Kickstarter, e deu tão certo que o FaceBook comprou há algumas semanas. Os apoiadores ficaram indignados e pediram reembolso! Mas e aí, Crowdfunding é doação ou investimento?’’ Assim como Clay Shirky mostra, quando criamos uma relação de mercado em cima de algo previamente fora dessa lógica, podemos modificar profundamente essas relações, nessa perspectiva os internautas deixam de ser somente apoiadores e podem se tornar co-produtores dos projetos, dessa forma essa relação passa de uma empresa compartilhada para uma transação de mercado

Muitas empresas tentam deixar clara essa linha entre doações e investimentos, assim como é feito pela empresa My Major Company que chega a oferecer um retorno financeiro em certos casos. Mas ainda assim enfrentou diversas críticas no âmbito da transparência em relação ao que é feito com o dinheiro e a chance de retorno do investimento. Organizações como Ulule e KissKissBankBank deixam claro que no caso do projeto não avançar, ou seja, não conseguir a quantia necessária, toda a operação é cancelada e o investimento devolvido aos financiadores. Com isso vemos nesse universo de financiamento coletivo uma pluralidade de situações e formas, com o surgimento de novas startups e os avanços da legislação sobre o tema, veremos um desenvolvimento profundo nesse tipo de ação. Agora, onde está o Brasil nesse universo?

Aqui em Pindorama é interessante notar a diferença do perfil dos apoiadores em relação ao exterior. Apesar de estarmos ainda engatinhando na compreensão da internet como uma ferramenta para além do trivial entretenimento, é possível enxergar um interesse maior em projetos culturais e sociais, enquanto no exterior o que prevalece são os projetos ligados a tecnologia e aos games, como no caso envolvendo o próprio criador do MegaMen em 2013, onde foram arrecadados via kickstarter quase 4 milhões de dólares para reviver o veterano jogo de ação. Já aqui também temos algumas organizações voltadas ao auxílio ao financiamento coletivo, entre elas, Catarse, Arrekade e a Vakinha Online. Em 2013 a banda Raimundos lançou seu último CD, Cantigas de Roda, com a ajuda de 1699 apoiadores e 123, 278 reais em contribuições, 68, 278 reais a mais do que o valor necessário para o desenvolvimento do projeto. Além de uma interessante vantagem relativa ao valor da contribuição, com 10 reais ou mais o apoiador ganhou o download antecipado e seu nome escrito na galeria dos apoiadores, 35 reais ou mais, todos os prêmios anteriores e mais o CD físico em casa; essa relação entre o valor doado e suas vantagens chegam até o patamar de 5 mil reais, no qual o indivíduo ganhou além dos prêmios já mencionados, um CD autografado, camiseta, Vinil, ingresso com backstage e camarim para qualquer show no ano seguinte com direito a acompanhante,entre inúmeros outros prêmios.

Dessa forma, esse é um universo cheio de possibilidades para ambos os lados, assim como Senna nos fala: ‘‘Cara, o Crowdfunding é uma ferramenta muito legal, senão a melhor, para tirar do papel ideias legais e desafiadoras que jamais iriam ao mercado por conta própria naquele momento. É uma forma de fazer arte e tecnologia que vai além do lucro por si só, pois, acaba engajando a comunidade. É um processo em amadurecimento: o surgimento do Kickstarter e Catarse mostram que o Crowdfunding pode ser mais que uma simples vaquinha virtual, e quando o processo se torna uma relação de troca, os resultados são bem melhores. Mas muitos ainda estão aprendendo a usar a ferramenta. Vejo o ceticismo aumentando nos próximos tempos, mas também vejo esse amadurecimento rolando. ’’ Naturalmente ainda há outras questões em aberto para discussões, o objetivo desse texto foi apenas ilustrar os principais pontos desse fenômeno em crescimento e, principalmente, evidenciar como o uso da internet através das redes acaba transformando por diversas formas determinadas relações sociais previamente asseguradas em contextos socioculturais e mercadológicos.

Contudo, qualquer tipo de conhecimento apenas ganha vida ao lado de mentes capazes de compreendê-lo, o uso desse conhecimento pelos brasileiros ainda em fase rudimentar, mostra como ainda é grande o caminho para melhorar o uso desse meio como uma ferramenta para reprogramar a organização econômica e cultural através de transformações sociais mais diretas e dinâmicas, condizentes com esse novo tempo de contrastes entre o velho e o novo na Modernidade, potencializado pela espontaneidade permitida pelos novos meios que possuem essa forma mais descentralizada e espontânea.

Bibliografia
CASTELLS, Manoel. Redes de Comunicação e Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2013.
DENIS, Jacques. Crowdfunding, a Corrente da Amizade In Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo: Ano 7, nº 81, 2014.
MORAES, Dênis de. Comunicação Alternativa, Redes Virtuais e Ativismo: Avanços e Dilemas In Revista de Economía Política de Economia Política de las Tecnologías de la nformación y Comunicación www.eptic.com.br, vol. IX, Nº 2, mayo-ago. 2007.
SHIRKY, Clay. A Cultura da Participação: Criatividade e Generosidade no Mundo Conectado. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2011.

E-Links:

http://pesquisa.catarse.me/?ref=newsletter_pesquisa

https://www.kickstarter.com/year/2013/?ref=footer

http://catarse.me/pt/raimundos

https://www.kickstarter.com/projects/mightyno9/mighty-no-9

http://www.kotaku.com.br/oculus-rift-kickstarter-reembolso/

http://www.kotaku.com.br/kickstarter-nao-entregam-prometem/

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