Cultura digital, sociedade e política

26/06/2014

Food for Thought

 

Faz parte da nossa história retratar comida, desde os primórdios, e mais tarde na transição da Idade Média para a Idade Moderna, o gênero artístico natureza morta fez grande sucesso nos séculos XVI e XVII[1], o pintor Giuseppe Arcimboldo[2] inovou nessa técnica retratando, entre vários, seus mecenas utilizando frutas, legumes, verduras e peixes.

 

Fonte: http://www.giuseppe-arcimboldo.org

Fonte: http://www.giuseppe-arcimboldo.org

 

Posteriormente com a invenção do rádio e da televisão os programas de culinária garantiram seu lugar nas grades horárias das emissoras. E ainda hoje as receitas, de alguma forma, também fazem parte de programas de entretenimento ou diversidade, sem terem perdido seus programas exclusivos.
Recentemente, na era digital, essa idolatria mantém-se presente nas ferramentas digitais, aplicativos para smartphones e tablets, blogs, fotologs, comunidades e redes sociais. Ao olhar o Facebook é possível verificar a grande quantidade de posts relacionados a comida e confraternizações envolvendo comida, os quais parecem aumentar ainda mais, caso seja feriado, ou se alguns dos amigos estão de férias. A comida tem grande importância para nós, e o fato de poder compartilhar imagens de churrascos, almoços, jantares, sobremesas e sorvetes com os amigos parece potencializar a sensação de prazer já associada à comida. Isso não se limita ao rol de comidas de confraternização, as comidas saudáveis, aquelas pós-malhação, ou as pertencentes à dieta de perda de peso, também têm seu lugar.

De acordo com o Jornal da Manhã, de Minas Gerais, em janeiro de 2014, há 1,19 bilhão de usuários no Facebook, os quais clicam no botão de curtir 4,5 bilhões de vezes todos os dias, e compartilham a cada 24 horas, 4,75bilhões atualizações de status, vídeos e fotos de gatos e de comida.[3]

Ao combinarmos a já antiga pré-disposição ao compartilhamento de comida em momentos de celebrações, à portabilidade e agilidade que a tecnologia trouxe através dos smartphones e tablets, e o espírito do compartilhamento presente na internet, que faz parte de sua gênese, o resultado são as grandes quantidades de atualizações de status diárias, relacionadas a refeições, receitas e comida em geral.
http://www.giuseppe-arcimboldo.org

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As tecnologias digitais também revolucionaram as relações sociais criando uma nova dinâmica. As redes sociais são responsáveis pelo desenvolvimento de novas formas de interação e através dela é possível perceber o tipo de relação que se tem com os outros atores e com o objeto em questão (Recuero, 2009: 33). O compartilhamento de fotos ao lado de potes de Nutella, bolinhos de bacalhau, ou até celebrando a conclusão de uma receita de família preparada de forma caseira nos moldes tradicionais ajudam a revelar o estilo de vida e as mensagens que determinada pessoa busca transmitir. Ao associar-se a uma comunidade, ou integrar-se a um grupo, obtém-se acesso a diferentes conteúdos produzidos também por esses atores, e novas relações têm início através disso.

Ao associar-se a uma comunidade no Orkut, por exemplo, ou ao comentar em um novo weblog ou fotolog, um indivíduo pode estar iniciando interações através das quais vai ter acesso a um tipo diferente de capital social, ou ainda, a redes diferentes. (RECUERO, 2009: p.52)

Nesse novo ambiente as relações sociais se desenvolvem sem necessariamente as pessoas se conhecerem, mas o fato de publicarem suas preferências e atividades as une, criando assim novas comunidades, consequentemente novas discussões e posteriormente novos conteúdos, dando início a um novo ciclo que se repetirá por várias vezes.

As fotos também têm papel importantíssimo nesse cenário, uma vez que são elas as responsáveis por aproximar os interlocutores, através das imagens. Benjamin em seu texto “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” menciona exatamente essa propriedade da fotografia, que é “fazer as coisas ficarem mais próximas” (Benjamin, 1985: 170), mas em detrimento do caráter único das obras de arte.

A questão da exclusividade da obra, ou nesse caso da imagem ou foto, ou ainda a propriedade desta não é um problema, o valor desse material está totalmente relacionado ao seu compartilhamento, à quantidade de curtidas que a foto receberá e à quantidade de re-compartilhamentos que ela tiver. Esse é o ponto de convergência com a filosofia da internet, associada à liberdade de criação e a sua função de ser “o maior repositório de informações que a humanidade já viu” (Amadeu; Santana, 2007).

Ao se compartilhar a foto o objetivo é comunicar o estado de espírito, as relações sociais, o estilo de vida. Os mais variados sentimentos e desejos podem ser retratados através da prato que integra a foto: se a pessoa está em um restaurante chique ou não, se está na intimidade de um jantar com pessoas bonitas e famosas, se está comunicando que cultiva o corpo e a mente saindo da academia e “curtindo” um prato saudável, se precisa fazer inveja aos outros, ou se precisa incitá-los a cometer o pecado da gula e comer aquela sobremesa maravilhosa.

A capacidade de comunicação que a comida tem é imensa. Associado a isso há o fato de que “o compartilhamento em si é uma característica humana, não tecnológica” (Shirky, 2011: 142). A evolução da tecnologia em geral e a internet proporcionaram as ferramentas para tornar esse compartilhamento mais rápido, barato, fácil e interessante.

http://www.giuseppe-arcimboldo.org

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Uma agência de propaganda mapeou o que motiva o compartilhamento de fotos de comida: 25% são fotos cotidianas apenas para mostrar aos outros o que se está comendo; 22% estão documentando pratos que foram preparados por elas mesmas, seja como uma comemoração da conquista, ou buscando aprovação da comunidade, ou apenas elogios; 16% estão compartilhando uma ocasião especial, a qual foi comemorada com uma refeição ou prato especial, 12% é pura arte, a mesma coisa que Giuseppe Arcimboldo ou Paul Cézanne faziam séculos atrás, aqui busca-se aliar o alimento à arte com a finalidade de se inspirar os outros, ou transmitir alguma emoção, ou apenas compartilhar uma coisa bonita; e os últimos 10% estão compartilhando um bom momento com a família ou amigos, para o qual utilizam a comida como elemento de socialização, esse grupo de certa forma une-se aos 16% que compartilham a ocasião especial.[4]

Essa imensa capacidade de comunicação que a comida apresenta é por sua vez apreciada e reconhecida pela economia formal tradicional, a qual procurará fazer uso e apropriar-se. É importante frisar que o conceito de apropriação não está relacionado tanto à propriedade, mas sim ao direcionamento do uso da imagem (Amadeu; Santana, 2007). As empresas sabem que monopolizar as imagens não é viável, é melhor pegar carona no compartilhamento e atingir o maior número possível visualizações. Isso é verdade se o que se está compartilhando é positivo para o produto, caso contrário vale a regra tradicional de propriedade e busca-se retirar a imagem de circulação.

http://www.giuseppe-arcimboldo.org

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Quanto mais espontâneo for o compartilhamento da imagem que contém um determinado produto, melhor será para seu fabricante, tanto no que diz respeito à presença da marca na mente dos consumidores, quanto no que diz respeito ao custo, uma vez que será uma propaganda gratuita. Acredito ser possível dizer que um dos objetivos das áreas de marketing atualmente é ter um post de Facebook, Flickr, ou Instagram que torne-se um viral.

 

[1] De acordo com Wikipédia: natureza-morta é um tipo da pintura e da fotografia que retrata seres inanimados: como frutas, louças, instrumentos musicais, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre outros objetos. Esse gênero de representação surgiu da Grécia Antiga, e também se fez presente em afrescos encontrados nas ruínas de Pompéia. A denominação Natureza morta, conforme o alemão Norbert Schneider, surgiu na Holanda no século XVII, nos inventários de obras de arte. A expressão competiu durante algum tempo com natureza imóvel e com representação de objetos imóveis no século XVIII

[2] Giuseppe Arcimboldo (Milão, 1527 – 1599) foi um pintor italiano, suas obras principais incluem a série “As quatro estações”, onde usou, pela primeira vez, imagens da natureza, tais como frutas, verduras e flores para compor fisionomias humanas. A partir de 1562 morou em Praga, então capital do reino da Boêmia e hoje da República Tcheca, onde consolidou sua carreira como artista. Serviu na corte de Fernando I e de seus sucessores, Maximiliano II e seu filho Rodolfo II, grandes mecenas. Arcimboldo foi admirado como artista pelos três monarcas, tornou-se pintor da corte e chegou a ser nomeado Conde Palatino.

[3] Jornal da Manhã, 23/01/2014, Disponível em: http://www.jmonline.com.br/novo/?noticias,22,ARTICULISTAS,90235. Acesso em:16 Jun.2014.

[4] Disponível em: www.360i.com/reports/online-food-photo-sharing-trends/. Acesso em: 02 junho.2014.

 

 

BIBLIOGRAFIA

AMADEU, Serio; SANTANA,Bianca. Diversidade Digital e Cultura in Seminário Internacional sobre Diversidade Cultural: práticas e perspectivas, 2007, Brasília. Disponível em http://diversidadedigital.blogspot.com.br. Acesso em 02 junho 2014.

MORAES, Denis. Comunicação Alternativa, Redes Virtuais e Ativismo: Avanços e Dilemas. Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación, Vol. IX, #2, mayo-ago/2007. Disponível em www.eptic.com.br. Acesso em: 02 junho 2014.

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (Primeira Versão). Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009.

SHIRKY, Clay. A Cultura da Participação – Criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

02/06/2014

Da democracia à revolução, como a internet está se tornando um instrumento político

Por Márcio Nascimento Souza

A democracia em seu significado etimológico seria o governo do povo[1], assim como era na Grécia Antiga onde essa palavra teve origem, as decisões eram tomadas pelos homens livres nas ágoras, as opiniões de cada cidadão da polis era expressa a fim de convencer os demais. Porém esse modelo revolucionário desapareceu junto com a soberania ateniense perante o domínio romano no século II A.C. A democracia apenas ressurgiu no século XIX como uma consequência da modernidade que aos poucos incluiu as mulheres e os analfabetos, porém essa não era mais a democracia participativa dos gregos antigos, mas uma democracia representativa que delega ao cidadão apenas o direito ao voto em períodos de eleições, onde os representantes dos cidadãos já se encontram em sua maioria alheios aos problemas deles por serem na verdade representantes de elites econômicas e políticas.  A democracia não se faz mais pela prática da expressão de cada indivíduo. Em partes, podemos entender isso como consequência do impedimento físico de reunir todos os milhões de cidadãos de um Estado moderno em um congresso, onde todos falariam e ouviriam a todos. Deste modo parece que a democracia representativa seria o único modo possível de democracia, não sendo mais ela o governo do povo, mas o governo sobre o povo.

Porém, hoje assim como a mais de 2500 anos na Grécia surgia de forma revolucionária a democracia, a internet está mudando os aspectos da vida social em quase todo planeta, ela está possibilitando aos indivíduos modernos romper com os obstáculos físicos de comunicação e permitindo acesso rápido as informações, dando vida a um novo tipo de democracia, seguindo o exemplo da constituição colaborativa islandesa, onde o povo por meio das redes sociais como o Facebook e o Twitter ou pela página oficial criada para a redação da nova constituição, contribuiu através de opiniões, sugestões e debates[2], Segundo William J. Mitchell (2002) a dinâmica social alcançada após uma revolução tende a ser irreversível, gerando outras transformações que tendem ser profundas:

“Como naqueles fortes abalos que marcaram nosso passado – as revoluções agrícola e urbana que se seguiram à invenção da roda e do arado, e a revolução industrial que emergiu da ciência do Iluminismo -, as dinâmicas sociais pós-revolucionárias parecem já ter atingido um impulso irreversível.” (MITCHELL, p32. 2002.)

A participação do povo na política através da internet segundo Eiríkur Bergmann[3] é fundamental para um nível mais avançado de democracia, porém, é importante lembrar que ela contínua sendo representativa através de eleições, o que leva Bergmann a pensar que não vivemos no limiar de uma nova democracia, mas sim, uma nova etapa onde a web é um instrumento para participação. Pois, a ciberdemocracia possibilita o surgimento mecanismos de discussão entre o cidadão e o Estado, tornando a participação popular mais real nas tomadas de decisões. Bergmann ressalta que logo após a pacífica “Revolução das Panelas” em frente ao parlamento em decorrência da crise econômica de 2008, a população a transferiu para a rede, onde os políticos a acolheram através da criação de uma Comissão Constitucional. Essa participação popular na nova constituição islandesa só foi possível graças ao fato de que 95% da população têm acesso à internet.

Uma rede de comunicações surgiu junto ao ciberespaço, possibilitando a interação entre todos com acesso a rede, assim como Manoel Castells aponta em A Galáxia da Internet, ela está fornecendo a integração de várias redes, como por exemplo, se observarmos a constante troca e cruzamento de informações do mundo todo através do Facebook e o Youtube veremos a possibilidade do surgimento de uma maior diversidade cultural, porque as distâncias e os territórios físicos tornam-se relativizados diante da circulação de informações e o acesso a elas, possibilitando uma maior aproximação entre indivíduos de diversas culturas.

 Assim como William J. Mitchell já parecia prever em E-Topia A vida urbana – mas não como a conhecemos, através de objetos de uso cotidiano, como celulares e relógios que tendem a se tornarem mais inteligentes, teremos as novas interfaces para o mundo digital. Mitchell via a web como uma construção coletiva, ou seja, podemos entender isso como uma oportunidade de criarmos uma nova experiência democrática. De forma otimista esse autor crê que em breve os meios de acesso a rede estarão tão presentes e integrados a vida cotidiana, assim como a eletricidade e a telefonia, podendo surgir redes comunitárias que seriam como as ágoras da Grécia Antiga. Mas o mesmo autor aponta preocupação quanto aos usos da internet, em seu texto de 2002 ele parecia já prever o recente alvoroço causado pela revelação de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana, ao dizer que achar que as informações fluem livremente pela rede é um mito otimista, pois “sentinelas” vigiam as informações (MITCHELL, 56. 2002).

No Brasil podemos observar algumas iniciativas como forma de aproximação do povo das questões públicas, como por exemplo, o Portal da Transparência que permite a qualquer cidadão com acesso a internet fiscalizar a utilização do dinheiro público, ou a TV Senado e TV Câmara que permitem acompanhar as discussões e decisões do Congresso Nacional, porém não vemos essas iniciativas como um meio de articulação de participação do povo no governo, mas como apenas uma prestação de contas.

Se por um lado as tecnologias da informação estão sendo usadas como ferramentas numa tentativa de participação maior do povo nas decisões políticas em um Estado democrático de direito como é a Islândia, por outro elas desempenham um papel de demolição de regimes pouco democráticos, como no caso da onda revolucionária conhecida como Primavera Árabe, onde o uso de redes sociais consegue driblar a censura e organizar manifestações de forma estratégica. Toda revolução depende de meios de comunicação como o uso de panfletos e jornais. E agora as tecnologias digitais estão desempenhando essa função, porém de uma forma nunca vista antes. Tentar desconectar a rede certamente acarreta num prejuízo econômico muito alto, e para evitar que as revoltas se propagassem mais através da internet alguns governos não tiveram outra escolha a não ser ceder à pressão popular[4].  Segundo Manoel Castells em Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet, o surgimento da rede possibilitou a ocupação de um espaço que é desprovido do controle total dos governos e das empresas, onde os indivíduos se juntam para reivindicar o direito de fazer história. Através da articulação pela rede, indo do norte da África pelas manifestações da Primavera Árabe, ao coração do mundo financeiro no movimento chamado Occupy Wall Street, as comunicações de massas por meio da rede estão fornecendo a possibilidade para a construção da autonomia dos indivíduos diante as instituições (CATELLS, 12. 2013). Para Castells esse é o motivo dos governos temerem a internet.

As mídias digitais podem ser as novas armas da revolução, assim como os instrumentos da construção de uma nova democracia.

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Fonte: cartoonaday.com

Bibliografia:

CASTELLS, Manoel. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

_______________. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

MITCHELL, William J. E-topia: a vida urbana – mas não como a conhecemos. São Paulo, Senac, 2002.

Sites:

http://tecnologia.terra.com.br/internet/constituicao-colaborativa-da-islandia-serve-de-exemplo-ao-brasil,f9f3a0b2993de310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html

http://www.20minutos.es/noticia/967110/0/rey/bahrein/presos/


[1] Dicionário da Língua Portuguesa, Michaelis. Disponível em michaelis.uol.com.br

[2] Para mais informações acesse: http://tecnologia.terra.com.br/internet/constituicao-colaborativa-da-islandia-serve-de-exemplo-ao-brasil,f9f3a0b2993de310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html

[3] Eiríkur Bergmann é professor de Ciências Sociais na Universidade de Bifröst na Islândia.

[4] Para mais informações acesse: http://www.20minutos.es/noticia/967110/0/rey/bahrein/presos/

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