Partido Pirata: A Cultura digital se insere na política
O Estado-Nação é um fenômeno político surgido a não mais de 400 anos, teve como objetivo estabelecer uma unidade, a princípio política e territorial, depois social e cultural, em um contexto econômico de desenvolvimento industrial e utilizou largamente a mídia impressa (maior tecnologia de comunicação da época) para essa finalidade (LEMOS e LEVY, 2010: 209), cuja lógica de funcionamento se mantém quase inalterada até hoje, depois de inúmeras mudanças em todos os âmbitos da sociedade: desde a forma de comunicação entre as pessoas até a percepção sobre a função do Estado, enquanto instituição política de representação social, passando pela criação de novos espaços (presenciais ou virtuais) de atuação social (MITCHELL, 2002: 57).
Em todo esse período da história, o que se alterou tão pouco quanto a estrutura do Estado foi sua forma de articulação com o restante das instituições na sociedade, caracterizada por Castells como “redes de poder”, em que “O poder é exercido através do monopólio da coerção (o monopólio da violência, legítima ou não, pelo controle do Estado) e / ou pela construção de significado na mente das pessoas, através de mecanismos de manipulação simbólica” (CASTELLS, 2013: 10). Essas redes são formadas a partir de outras organizações da sociedade, juntamente com o aparelho do Estado e seu útil monopólio da violência, com a finalidade de aplicar e/ou consolidar determinados interesses, pois “Aqueles que detém o poder constroem as instituições segundo seus valores e interesses” (idem). As articulações entre redes são das mais diversas naturezas, e se formam entre instituições financeiras, industriais, culturais, meios de comunicação (entre outros) e o aparelho do Estado (poder legislativo, judiciário, executivo) a partir de diversos interesses das partes. Dessa forma o dinheiro circula na esfera política e o poder político, entre as organizações privadas.
A partir da revolução digital da segunda metade do séc. XX, que traz a integração de cidades, serviços, comunicações e altera o paradigma de produção (industrial) vigente até então. O conhecimento passa a ser concebido e utilizado como mercadoria, que produz mais mercadoria através de inovação tecnológica (CASTELLS, 1999: 50), científica e estabelece a chamada “propriedade intelectual”, mecanismo que garante os direitos de exploração de inovações tecnológicas (invenções físicas, como máquinas e novas tecnologias) e, no caso da indústria cultural, os chamados “direitos autorais”, ou a propriedade sobre ideias e demais produções culturais (individuais ou coletivas) (DOWNEY, 2004: 179 – 180), juridicamente legitimado através da pressão de setores da sociedade pela valorização monetária do conhecimento.
Considerando-se as novas formas de comunicação e intercambio de informação proporcionada pela internet, como e-mail, blogs, listas de discussão e principalmente os modelos de compartilhamento peer-to-peer (P2P), mais conhecido como bittorrent, onde arquivos de áudio/ vídeo são compartilhados livremente, fornecidos por e destinados para outros usuários , representa a “objetivação técnica do espaço de significação comum da humanidade” (LEMOS e LEVY, 2010: 201), ou um espaço virtual de infinitas possibilidades de produção / reprodução e apropriação de cultura e conhecimento, através do sistema de hiperlinks e dos infinitos espaços atuais, ou seja, formas de classificação de acordo com algum critério, promovendo sua constante atualização. Enfim, na internet se encontra o potencial de reunir a noosfera (conjunto de todos os símbolos e ideias produzidos pela cultura humana) (idem: 203), possibilitando uma efervescência cultural nunca antes ocorrida na história da humanidade.
Dada a pressão da indústria cultural, representada pelos órgãos jurídicos em criminalizar o livre compartilhamento de conhecimento em suas diversas formas multimídia na internet, em 2006 surge na Suécia o primeiro Partido Pirata, como um movimento de resistência civil a essas prátcas. Se apropriam da alcunha de “pirata” e toda a conotação dos antigos ladrões dos mares, para transformar a expressão no símbolo da era digital: se “navega” na internet, a troca de arquivos não autorizado é chamada pejorativamente de “pirataria“¹. Assim, todos que utilizam a internet como ambiente de compartilhamento são potenciais piratas, que não pagam pela propriedade intelectual que foi violada. Esse novo partido, nas palavras do fundador, Rick Falkvinge, sobre o contexto de fundação do Piratpartiet:
“Os políticos tinham posições unilaterais sobre a questão dos direitos autorais. Só ouviam a indústria do entretenimento e criavam leis mais e mais repressoras. Eu pensei: só com argumentos e debates será impossível fazê-los nos entender. A única maneira, então, era agir diretamente e disputar votos nas eleições. Ignorar os políticos, que não nos ouviam, e falar diretamente com os eleitores”².
Para enfrentar a rede de interesses em torno da indústria cultural e a crescente mercantilização do conhecimento, compreendeu-se a necessidade de adentrar na política partidária para articular as próprias redes de enfrentamento, em conjunto com movimentos sociais, mídia independente e a juventude que cresceu inserida na cultura digital, chamado por Castells de redes de contra poder, em que atores desafiam as instituições com o intuito de modificá-las, no caso da democracia, por conta da crise de representatividade que se agrava cada vez mais (CASTELLS, 2013: 10). Esse trabalho de resistência e mudança é realizado através de mecanismos de comunicação alternativa: formas de produção de informação que envolvem a horizontalidade nas decisões editoriais, transparência na produção do conteúdo, ambientes compartilhados e participativos, com o objetivo de “Construir espaços de afirmação de óticas interpretativas críticas e de práticas jornalísticas cooperativas, com a finalidade de defender a diversidade informativa e valores éticos” (MORAES, 2007: 3), métodos muito diferentes daquelas praticadas pela grande imprensa. Essas novas práticas se extendem a outras esferas da vida, como a produção cultural colaborativa, a criação de redes autônomas que envolvem troca de experiência e até bens materias, novas formas de relacionamento da sociedade em relação à cidade, aos espaços públicos e às esferas de pder, entre outros. Enfim, os novos atores da sociedade, que não mais se sentiam representados por políticos que mercantilizam o espaço público, as empresas privadas corruptoras e práticas que parecem ter perdido a dimensão social da vida.
O Partido Pirata, além de novas percepções sobre a propriedade intelectual, apresenta práticas inovadoras em seu funcionamento interno: não existem hierarquias rígidas na estrutura do partido, incentiva-se a participação direta, facilitada por sistemas online (como o LiquidFeedback), com sistemas de comentários, facilitando a discussão e aprimoramento das propostas por todos os membros, distribuindo o poder de decisão entre todos. O partido propõe também um novo sistema chamado “democracia líquida“, que já vem sendo utilizado em diversas cidades e alguns países, se trata de um misto entre a democracia direta e a representativa, como parte do compromisso programático de “aprimorar a democracia com uso de ferramentas de consulta direta propiciadas pelas tecnologias de comunicação”³.
Por conta das recentes denúncias sobre a espionagem dos EUA no ambiente digital e o fornecimento de dados pessoais por parte das empresas de internet, além de propostas de leis que prevêem duras punições para a pirataria online ( Lei de decência nas comunicações de 1995, Lei da Espionagem de 1996 e ACTA, SOPA, PIPA, mais recentemente, além da Lei de crimes digitais, no Brasil) as pautas do Partido Pirata têm recebido maior atenção por parte da sociedade, que percebeu a importância da garantia de seus direitos digitais (DOWNEY, 2004: 278 – 280).
No Brasil, o Partido Pirata surgiu em 2007 ainda não foi institucionalizado como partido político, mas desde sempre atuou como um coletivo de militância pela inclusão digital, direitos humanos, de liberdade e privacidade na internet e inclusão digital, além da efetiva participação popular nas decisões políticas e novos modelos de organização institucional, mais descentralizados e horizontais.
A existência desse tipo de movimento (social e político) ao redor do mundo sinaliza a necessidade de reformulação da instituição político-partidária atual, que beneficia a muito poucos e não promove uma real participação, mesmo com os avanços tecnológicos e possibilidades reais de extensão da cidadania. Esse tipo de enfrentamento definirá o futuro da internet, a forma como ela será construída e gerida a partir de então, e mostrará se suas atuais possibilidades serão de fato aproveitadas, o que acarreta profundos questionamentos sobre a democracia, as fontes de poder que emanam da sociedade e a forma como a cultura e o conhecimento devem ser produzidos pela humanidade.
Notas:
¹ Partido Pirata do Brasil: Cartilha Pirata. Disponível em: http://www.calameo.com/read/000874400a75b875e7828
² http://super.abril.com.br/cultura/deputado-pirata-446697.shtml
³ http://partidopirata.org/documentos/programa/
Bibliografia:
Castells, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo, Paz e terra, 1999
______________. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013
Downey, John. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais.São Paulo, Senac, 2004
Lemos, André; Levy, Pierre. O futuro da internet. São Paulo, Paulus, 2010
Mitchell, William J. E-topia: a vida urbana – mas não como a conhecemos. São Paulo, Senac, 2002
Moraes, Denis de. Comunicação alternativa, redes virtuais e ativismo: avanços e dilemas. Revista de economia e política de las tecnologias de a informacion y comunicacion vol IX, n°2, mayo – ago / 2007.