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Islândia: a ciberdemocracia em questão

HEITOR GARTNER

Atualmente, a possibilidade de acompanhamento  das atividades das diferentes esferas de poder, seja o executivo, legislativo e judiciário consiste em  uma facilidade considerável, em virtude de instrumentos de pesquisa como a Internet.  Um exemplo corresponde a seguir as mais variadas atividades parlamentares do Congresso Nacional como a elaboração de projetos de leis, ter acesso aos mais diferentes portais da transparência, onde aparecem os gastos do Governo (nas esferas federal, estadual, municipal) e do Poder Legislativo (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais).

Ao atingir o ciberespaço[1], os portais do Governo, desde o âmbito executivo até o  municipal, tendem não somente a  disponibilizar serviços, mas ampliar os meios de informação e conhecimento e garantir a interação da sociedade com o Poder Público. Neste sentido, a ciberdemocracia consiste na criação de processos e mecanismo de discussão, a partir de um diálogo entre o Cidadão e o Estado. Com isto, visa-se alcançar uma política de decisões, em que a participação popular se torna mais real em termos práticos.

Constituição islandesa – uma revisão de parâmetros

A crise econômica internacional de 2008 fez com que a Islândia imediatamente requisitasse ajuda externa ao FMI. Os islandeses recusaram-se a pagar os depósitos dos credores ingleses e holandeses, confrontados com a falência dos três maiores bancos do país. Segundo Lemos e Lévy (2010), escândalos desse gênero passam a desencadear um “crescimento da vontade e da prática da transparência democrática”[2]. De fato, o  país passou  a buscar uma reformulação interna, com a revisão de suas  bases constitucionais[3], e de maneira surpreendente e pioneira: através do exercício da ciberdemocracia.

 

A  nova proposta de  Constituição  foi redigida por uma comissão eleita em 2010, composta por 25 cidadãos comuns.  O modelo, entregue ao Parlamento do país no dia 29 de julho de 2011,  obteve dois terços de aprovação do povo, em plebiscito nacional.

 

Os trabalhos para a criação da nova Constituição tiveram início a partir de um Fórum Nacional, em que 950 islandeses passaram a discutir as leis básicas, como os recursos naturais do país. Estes, de acordo com a nova Constituição, caso já não tenham sido privatizados, continuarão sob  controle do Estado – o que implicaria consequências sobre o setor pesqueiro nacional, por exemplo. Ainda, configuram-se como temas centrais abordados nos documentos a distribuição de poder, transparência e responsabilidade.

Com isso, gerou-se um relatório com mais de 700 páginas que passou a ser analisado pelo Conselho Constitucional Islandês, composto por 25 pessoas, que recorreram às redes sociais para divulgação e recebimento de sugestões do público.

No caso em discussão, ao se exaltar o elevado nível de representação da população, insere-se a discussão da representatividade como um tema em pauta no âmbito político. Nestes termos, observa-se a crescente tendência de expansão da participação popular por meio das redes, haja vista a possibilidade de divulgação das informações de maneira direta, exatamente como idealizado pelos indivíduos. Como apontam os referidos autores,

a produção livre e colaborativa aumenta as possibilidades para obter informações a partir das mais diversas fontes, dando ao cidadão a capacidade crítica de escolhas até então impossíveis com as tecnologias analógicas ou as mídias de função massiva.[4]

Lemos e Lévy também consideram não se tratar “apenas de uma diferença de grau, mas de uma mutação na natureza do espaço de comunicação, de um salto da inteligência coletiva humana”[5].

Ao refletir acerca do ciberespaço, reiteram que esse “oferece uma liberdade de expressão, memória e navegação na esfera informacional infinitamente maior do que todas as outras mídias anteriores”[6].

No entanto, a concretização do projeto islandês enfrenta ameaças, uma vez que alguns parlamentares teriam preferido redigir pessoalmente a Constituição, com a consulta de  especialistas. Contudo, as novas tecnologias estão reinventando os processos democráticos, com o surgimento de novas e eficazes ferramentas de participação popular. Em suma, o movimento fortalece a  possibilidade de o cidadão colaborar com o Poder Público e acompanhar suas ações, com a transparência sem precedentes proporcionada, sobretudo, pela internet.                  

Neste processo, evidencia-se a atuação do Conselho Islandês. Em seu portal na internet, a instituição faz questão de destacar o acesso que a população tem aos trabalhos do órgão,  através de mídias sociais como Facebook, Youtube e Flickr,  bem como por comentários na referida página da web.

 

 

 Referências

Aproximatión ética y legal a las redes sociales. Disponível em http://riunet.upv.es/bitstream/handle/10251/9122/Memoria%20Proyecto.pdf?sequence=1.  Acesso em: 21/04/13.

 

Ciberdemocracia – A democracia no século XXI. Disponível em

http://www.portalconscienciapolitica.com.br/ciber-democracia/. Acesso em: 12/05/13.

 

Constituição redigida pelo povo sob ameaça na Islândia. Disponível em  http://www.dw.de/constitui%C3%A7%C3%A3o-redigida-pelo-povo-sob-amea%C3%A7a-na-isl%C3%A2ndia/a-16684483. Acesso em: 04 e 11/05/13.

 

Dois terços votam a favor de nova constituição na Islândia. Disponível em  http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/10/dois-tercos-de-islandeses-votam-por-nova-constituicao.html.  Acesso em: 04/05/13.

 

Islândia prepara nova constituição pelo Facebook. Disponível em

http://ponto.outraspalavras.net/2011/07/14/islandia-prepara-nova-constituicao-facebook/. Acesso em: 21/04/13.

 

LEMOS, A.; LEVI, P. O futuro da internet. Em direção a uma ciberdemocracia planetária. Coleção Comunicação. Paulus – 2010.

 

 

 

 


[1] [1] De acordo com Lemos e Levy,  o ciberespaço consiste em  um ambiente complexo, em que se desenvolve a cultura política, gerando novos processos e produtos.

[2] LEMOS, A.; LEVI, P. O futuro da internet. Em direção a uma ciberdemocracia planetária. Coleção Comunicação. Paulus -2010.p.66.

 

 

[3] A  constituição da Islândia foi originalmente promulgada em 1941, com base na carta Dinamarquesa. Na  primeira consta que a chefia do legislativo deve ser realizada conjuntamente pelo presidente e pelo parlamento, sendo o poder de fato exercido pelo primeiro –ministro islandês.

[4] Op. cit. p.63.

[5] Op. cit. Loc. cit.

[6] Op. cit. p.55.

Egito e Síria: o papel das tecnologias digitais na Primavera Árabe

HEITOR GARTNER

A chamada Primavera Árabe  consiste em uma complexa sequencia de protestos iniciados em 2010, ocorridos na Tunísia , no Egito , resultando também em guerra civil na Líbia  e na Síria, atingindo também outros locais da região. A revolução é considerada a primeira grande onda de protestos democráticos do mundo árabe no século XXI. Os regimes em questão, nascidos de nacionalismos árabes dentre as décadas de 1950 e 1970, foram se convertendo em governos repressores que impediam a oposição política credível que deu lugar a um vazio preenchido por movimentos islamistas de diversas índoles.

O movimento, desencadeado em dezembro de 2010, quando um jovem tunisiano- Mohamed Bouazizi – ateou fogo ao próprio corpo, apresenta-se como nítido exemplo de consolidação da última geração de direitos fundamentais a povos que sequer tinham as garantias mínimas, elencadas pela primeira geração dos mesmos direitos. O acesso à informação, direito fundamental proposto por Bonavides[1] (apud Cavalcanti, 2005), foi importante fator para a ruptura com o status quo vigente, sendo inegável que o uso da internet tenha contribuído para desencadear o processo de mudança na região.

A adoção da primeira lei de direito à informação por um país do Oriente Médio, na Jordânia, em 2007, constitui-se como exemplo  desta tendência, que passou a  se estender a todas as regiões geográficas do mundo comumente citadas. Nesse contexto, inclui-se a primeira decisão tomada por um tribunal internacional, no intuito de reconhecer o direito à informação, com declarações cada vez mais enfáticas de órgãos e autoridades internacionais sobre o status deste direito.

Notadamente, a ocorrência do movimento tem relação com a crise econômica global de 2008,  gerando agravamento da pobreza  e a elevação de preços. Nos atos de revolta, têm se destacado técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas, envolvendo recursos como Facebook, Twitter e Youtube. Preocupado com as manifestações, o governo egípcio suspendeu a Internet e a telefonia móvel.  Sob a perspectiva política,  apontam-se regimes corruptos e autoritários como aspectos motivadores do movimento , informação  revelada pelo vazamento de informações constantes em  telegramas diplomáticos dos Estados Unidos, divulgados pelo Wikileaks.

Como sugerem estudiosos, a utilização do Facebook e de aparelhos celulares constituiu um instrumento de auxílio ao processo revolucionário.  Isto, por decorrência, assume um papel na propagação dos movimentos e, consequentemente, no alcance de seus objetivos, ao menos no caso egípcio. Na realidade, diversas manifestações tiveram início nas redes sociais e se estenderam às ruas. Uma das vantagens deste tipo de comunicação consiste no anonimato, como aponta Antoun (2008, p.2)[2] .Segundo Hussein Amine, especialista em meios de comunicação da Universidade estadunidense de O Cairo, as redes sociais deram pela primeira vez aos militantes a possibilidade de divulgar rapidamente a informação escapando das restrições governamentais.

O regime sírio, por sua vez,  tentou apaziguar o cenário e anunciou a intenção de promover reformas, tais como a anulação das leis de emergência, em vigor no país desde a revolução de março de 1963. No país, o partido Baath representa um fator de coesão social, e reproduz o apoio da população ao regime de Assad. Essa base popular ainda é representativa de uma parte da população síria. Portanto, esse regime não pode ser descrito como era o  de Hosni Mubarak, no Egito, onde havia uma distinção clara  entre o presidente e as forças de segurança, particularmente o Exército. Este preferiu não apoiar mais o presidente e se encarregou dos assuntos do Estado.

Ao contrário dos outros países da “Primavera Árabe”, que já estão em um sistema transitório de governo, ou que controlaram as manifestações, a Síria permanece com um futuro incerto. Os conflitos se mantêm mesmo após um ano da primeira manifestação e o número de mortos não pode ser confirmado devido à repressão que a imprensa sofre na região.

Dessa forma, as perspectivas do regime serão condicionadas não só pela proporção do apoio entre os habitantes da periferia, mas principalmente pela força da classe média entre as elites sunitas nas grandes cidades, sobretudo Damasco, e que apoiaram o regime na década de 1980, contra 0s Irmãos Muçulmanos. Também, os curdos (10% da população)  terão  um papel importante na capacidade do governo reprimir as manifestações.

Sabe-se que o futuro da Síria depende dos jovens do país- pessoas entre 20 e 30 anos, que constituem mais da metade da população. Tratam -se de sunitas e de outras comunidades, que vivem nas periferias de grandes cidades- elas determinarão a forma e o futuro do país.

 A comunidade internacional vem se mobilizando para pressionar a saída de Bashar al-Assad do governo ou encontrar uma solução pacífica. Entretanto, alguns países não foram favoráveis às primeiras propostas da ONU, como a China e a Rússia, que vetaram a resolução que condenava a repressão do governo sírio contra os manifestantes. A Síria, sendo o único laço restante com a Rússia, passa a ser um caso muito particular para a diplomacia russa, uma vez que essa interação promove um vínculo entre o governo de Moscou e os países árabes, o que seria interessante para a  garantia da influência política russa na região. O regime continua fazendo uma forte repressão aos opositores. Além disto, um empecilho criado no plano da ONU foi a fixação das datas para a retirada das tropas do exército de Bashar al-Assad.

Já os Estados Unidos, principal potência mundial que apoia os opositores do regime de Assad, atualmente não possuem capacidade de manobra para abreviar o fim da revolta e muito menos a possibilidade de uma intervenção militar, caso isso fosse aprovado por alguma resolução do Conselho de Segurança  da ONU. O país pode, contudo, empregar sua capacidade militar, enviando armas aos opositores e na defesa de que seja aprovada alguma resolução na ONU, mas dificilmente fará algo mais efetivo.

Um avanço aparente nas negociações foi o plano de paz, aceito pela Síria, proposto por Kofi Annan (emissário da ONU). O plano prevê o fim de todos os atos de violência, da parte do regime ou dos opositores. Também prevê que a pacificação seja supervisionada pela ONU, a libertação de presos políticos e o envio de ajuda humanitária. Contudo, o que se viu alguns dias depois do encontro entre Kofi Annan e Bashar al-Assad foi um cenário diferente do proposto no plano.

Como possível análise do cenário internacional, identifica-se que uma queda do regime sírio provocaria um desequilíbrio de poder no Oriente Médio, abrindo um vácuo de influência na região, o qual certamente seria disputado entre as principais potências mundiais, pois a Síria e o Egito apresentam considerável relevância geopolítica a muitos países. Ao menos no Egito, a renúncia do Presidente Hosny Mubarak inaugura um governo de transição, com indefinições políticas em âmbitos interno e externo.

 

 

Referências

CAVALCANTI, F.R. A primavera árabe à luz da Teoria das Gerações dos Direitos Fundamentais. Disponível em http://www.pesquisedireito.com/artigos/diversos/apaltgdf. Acesso em 27/05/13.

Facebook, un importante “punto” en la Primavera Árabe .Disponível em
http://actualidad.znoticias.com/facebook-un-importante-punto-en-la-primavera-arabe. Acesso em 16/06/13.

ORTUNES, L. Incertezas sobre a primavera árabe. Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/42/artigo266344-1.asp. Acesso em  26/05/13.

MENDEL,T. Liberdade de informação: um estudo de direito comparado. 2ª ed. revisada e atualizada. Tradução de Marsel N. G. de Souza. Brasília. UNESCO, 2009.

Primavera Árabe. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera_%C3%81rabe. Acesso em 26/05/13.

SILVA, R. As Redes Sociais e  a revolução em tempo real. O caso do Egito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/37496/000820279.pdf?sequence=1. Acesso em 25/05/13.

WALLERSTEIN, I. Não Chore Ainda pela Primavera Árabe. Disponível em http://www.outraspalavras.net/2013/02/23/nao-chore-ainda-pela-primavera-arabe/. Tradução de Gabriela Leite. Acesso em 25/05/13.

ZISSER, E. A Síria na Hora da Verdade. Tradução de Yosi Turel. Revista “Hebraica”. Maio de 2011.

 


[1] Em sua obra, o autor sugere o direito à democracia, à informação e ao pluralismo.

[2] apud SILVA, 2011, p.18