DEBORA LEÃO
Cada um de nós pode contar sua própria história. Talvez isso fosse verdade desde sempre, porém a internet oferece a chance de que essas histórias sejam contadas sem cortes, sem edições, a partir do ponto de vista de quem viveu os eventos em primeira mão e dá a esses relatos o potencial de um público imenso. “A Internet realmente abriu espaços a vozes que agora encontram possibilidades de difusão incríveis,” resume Eduardo Galeano. Na chamada Primavera Árabe, o sistema caótico da internet gerou pequenas lideranças, personagens inspiradores, imagens indignantes, e ao mesmo tempo permitiu que as atividades revolucionárias ocorressem sem uma organização central. Não há um Che Guevara ou um Nelson Mandela do norte da África, há milhares de pessoas, ativistas, anônimos, jornalistas, civis.
Na caso da Tunísia, há uma figura que se destaca: Mohammed Bouazizi, o jovem que vendia vegetais na rua na cidade de Sidi Bouzid. Depois de um desencontro com a polícia, que lhe forçou a fechar o seu estande de venda, e ao perceber a indiferença do governo, Bouazizi ateou fogo a si mesmo em um ato público de protesto e desespero. O jovem virou um mártir e a faísca que levou milhares de pessoas às ruas de seu país. A história dele se parecia com a dos milhares de jovens tunisianos que, tendo completado a educação superior, não conseguiam emprego e se viam sem perspectivas e oportunidades. Sua imagem circulou o mundo através da rede e produziu o signo que levou uma população revoltada às ruas.
A frustração na Tunísia vinha se construindo muito antes desse episódio, é claro. Seu governo autoritário se baseava principalmente na troca de liberdades políticas por um crescimento econômico que se provou frágil, com políticas que não se sustentaram em um panorama global desfavorável. Uma massa de jovens com graduação universitária e sem perspectiva de emprego, corrupção descarada por parte do governo que usava táticas repressoras que se tornavam cada vez mais óbvias.As causas para a instabilidade social se encontravam na realidade do país.
No entanto, a rapidez com que as coisas aconteceram sem dúvida foi propiciada pelo uso da internet – e especialmente das redes sociais. No dia 3 de janeiro de 2011, o jornalista Christopher Alexander escreveu para a revista Foreign Policy que ainda era “cedo para saber se esses protestos assinalam o início do fim para Ben Ali”. Menos de duas semanas mais tarde, o ditador Ben Ali fugiria da Tunísia.
A cidade de Sidi Bouzid, onde no dia 19 de dezembro Bouazizi cometeu seu ato de martírio, não é um centro econômico ou político do país. E mesmo assim, sua imagem foi forte o suficiente para inspirar uma onda de protestos na região. Naquele momento, apenas 2 milhões dos 10 milhões de cidadãos da Tunísia usava o Facebook enquanto o Twitter contava com apenas algo em torno de 500 usuários ativos no país (1). Contudo, explica a ativista tunisiana Rim Nour, é mais importante observar eram estes usuários e como se apropriavam das tecnologias, do que notar sua quantidade. Entre esses poucos usuários estavam ciberativistas já experientes, que usaram as ferramentas de mídia para tornar os acontecimentos públicos para a população do país. Estes ativistas trabalharam da maneira que Silvia Lago Martínez identifica como própria dos movimentos sociais no contexto da cultura digital, se apropriando do “espaço dos fluxos” e se organizando de maneira descentralizada e em redes horizontais.
Principalmente através de vídeos no Facebook e do Twitter, esses ciberativistas espalhavam as imagens da brutalidade policial em resposta aos primeiros protestos inspirados em Bouzazizi. Em pouco tempo, cidadãos ao redor do país subiam suas próprias fotos, vídeos gravados por celulares e relatos de manifestações – ao alcançar as regiões mais urbanas e prósperas, os protestos começaram a atrair um público mais amplo. O que Luciano Alzaga cita como princípios seguidos por projetos de webmídia alternativa (2) parece ser verdade para o uso tanto redes sociais de grande porte quanto de mídias alternativas nas insurreições na Tunísia: foram “espaços de denúncia das injustiças, de difusão de informação antagônica, de coordenação entre organizações de cidades ou bairros,” propiciaram o debate dentro da Internet e a ação fora dela.
Em seu pesquisa Opening Closed Regimes, estudiosos da universidade de Washington se perguntam qual foi o papel das mídias sociais em moldar os debates políticos na Primavera Árabe. Sua investigação se foca na Tunísia e no Egito, e demonstra que essas ferramentas eram usadas por um público com um perfil particular (jovem, urbano, bem educado) para conduzir as discussões, pressionar seus governos. O estudo também chega à conclusão de que as conversas online sobre tópicos como democracia e liberdade muitas vezes precediam grandes protestos. Muito distante da dicotomia real/virtual e da ideia de isolamento propiciado pela internet, os protestantes na Tunísia agiram resgatando os espaços públicos e como coloca Rueda Ortíz, com uma espécie de “continuidade de relações virtuais e cara a cara que mantem e projetam ações políticas”.
Outro uso importante das ferramentas de comunicação digitais na revolução de Jasmim foi de alívio de desinformação. No terreno da informação, Dênis de Moraes propõe que Internet é “mais uma arena de lutas e conflitos pela hegemonia”, na qual se busca conquistar o consenso e a liderança cultural e ideológica em uma sociedade. Nesse sentido, quando o próprio governo respondia, publicando por exemplo informações falsas que a polícia havia cessado com o uso de fogo contra os manifestantes, os opositores utilizavam a internet para minar a propaganda. Quando a situação ameaçava chegar ao caos, o uso de mídias sociais foi essencial para resistir à boatos que poderiam ser desestabilizadores, utilizada para proteger e organizar seus bairros.
Apesar do sucesso no uso das ferramentas digitais para catalisar protestos e empoderar a população, as dificuldades para organizar um país na transição para a democracia mais efetiva se provaram muito mais árduas. Quase dois anos depois a figura já não é tão esperançosa, as imagens de cidadãos orgulhosos com dedos pintados durante as eleições em outubro de 2011 são uma realidade distante. A notícia do assassinato (3) de um proeminente líder da oposição lembrou estrangeiros e locais da incerteza que ainda paira sobre o sucesso da democracia no país. Relatórios de abusos cometidos pelo governo, uso de violência e até mesmo retrocessos são frequentes.
Porém fica claro que a cultura de utilização dos meios de comunicação digitais que se estabeleceu durante a revolução deixou a sua marca. Estas continuam sendo meios de denúncia e resistência. “Uma coisa resta da nossa revolução: a liberdade de expressão,” diz a escritora Souhir Stephenson no jornal New York Times, “se há algo que vai nos salvar, será a nossa recusa a voltar a se calar”. Desse ponto de vista, a transformação social e cultural na Tunísia não deixa de ser marcante, a sua população um exemplo de cibercultura como posicionada por autores como Manuel Medina, Pierre Lévy e Rueda Ortíz.
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(2) Um exemplo das webmídias alternativas criadas na Tunísia é a KasbaTV e o independente Nawaat (nawaat.org)
RUEDA ORTIZ, Rocio. Cibercultura: metáforas, prácticas sociales e colectivos en red. Nómadas (Col), num 28, abril, 2008, pp. 8-20. Universidad Central, Bogotá, Colombia. Disponível em http://www.ucentral.edu.co/movil/index.php?option=com_content&view=article&id=557&Itemid=2456
LEMOS, André; LEVY, Pierre (2010). O futuro da internet. São Paulo, Paulus.
DE MORAES, DÊNIS. Comunicação alternativa, redes virtuais e ativismo: avanços e dilemas. Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación, vol. IX, n. 2, mayo – ago. / 2007.
HOWARD, Philip. Opening Closed Regimes. Project on Information Technology & Political Islam (PITPI). University of Washington, 2011.
MARTÍNEZ, Silvia Lago. Internet y cultura digital: La intervención política y militante. Nómadas (Col), num 28, abril, 2008, pp. 8-20. Universidad Central, Bogotá, Colombia. Disponível em http://www.ucentral.edu.co/movil/index.php?option=com_content&view=article&id=557&Itemid=2456 (maio/2013)