Apresentação e tradução de “Resignação” de Theodor Adorno – Por Felipe Catalani

16/06/2021 by: teoriacritica

O blog Teoria Crítica, Formação e Cultura indica a leitura de “A paciência do intelectual. Apresentação de Resignação, de Theodor W. Adorno, traduzido por Felipe Catalani”, publicada originalmente nos Cadernos de Filosofia Alemã (v. 23; n. 1, páginas 107-115) e da tradução por ele realizada de “Resignação” de Theodor Adorno.

adorninho

APRESENTAÇÃO
A paciência do intelectual. Apresentação de Resignação, de Theodor W. Adorno, traduzido por Felipe Catalani

Felipe Catalani

felipecatalani@gmail.com (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil)

Ironia do destino: nas anotações da aula que Adorno daria no dia 17 de abril de 1969, a famosa aula que foi interrompida por um grupo de estudantes e que faria com que o curso sobre “Introdução ao pensamento dialético” fosse temporariamente suspenso, lê-se que parte da aula seria dedicada ao problema da relação entre teoria e práxis, e no final das anotações ele escreve: “Evt. Resignation vorlesen. [Eventualmente, ler ‘Resignação’]” (Adorno, 1992). O debate sobre o problema da práxis, do ativismo e dos acontecimentos de 1968 e as posições de Adorno1 geralmente parte, mais ou menos, de textos como esse aqui introduzido, o “Notas marginais sobre teoria e práxis”2 (Adorno, 1995a), a troca de cartas entre Adorno e Marcuse (Adorno, 1997), a entrevista a Der Spiegel de 1969 (“Keine Angst vor dem Elfenbeinturm”) (Adorno, 1986), uma outra entrevista intitulada “Kritische Theorie und Protestbewegung” (Adorno, 1986) e alguns textos de intervenção3 do período em que Adorno se posiciona contra as leis de emergência. Não são raras as vezes em que o debate se transforma em um julgamento moral das posturas de Adorno enquanto indivíduo, dividido entre os acusadores, que o censuram pelo desengajamento e pela falta de coragem (e a respectiva resignação diante dos acontecimentos urgentes da vida política), e, do lado da defesa de Adorno, aqueles que criticam o voluntarismo da práxis cega, o ativismo automatizado que mimetiza os homens práticos do mundo burguês, o falso imediatismo e defendem a dimensão prático-política da crítica teórica autônoma e da compreensão radical da realidade. Não há como negar que a controvérsia entre marcuseanos4 (ou brechtianos) e adornianos já está um tanto desgastada, e que o ensaio aqui traduzido, que já está com praticamente 50 anos de idade, entra em um debate que já foi bastante revirado – mas que sempre retorna.

Como introdução à leitura do ensaio Resignação, gostaria de, nessa breve nota, ressaltar um ponto que aparece como sinal histórico na própria postura de Adorno enquanto intelectual, mais especificamente, como teórico crítico cujo pensamento é guiado pelo horizonte emancipatório. Talvez não seja suficiente dizer que para Adorno a “saída” estava bloqueada – o que de fato era a sua posição, pois seu entendimento de emancipação estava ligado a um conceito forte de liberdade e não a uma política em meio a um horizonte reduzido – mas há algo nesse ensaio (que não deixa de ser uma crítica da resignação, mais especificamente, uma crítica do conformismo ativista), de crítica do desespero: e é justamente esse ponto que, creio eu, dá a impressão de que esse texto pertence a uma outra época, mas que, por outro lado, aponta para a nossa.

“Encarcerados querem desesperadamente sair” (Adorno, 1977). O apelo à teoria e ao pensamento, aqui, não deixam de ser um apelo à espera. A era inaugurada pelo fim da Segunda Guerra Mundial, pós-Auschwitz e pós-Hiroshima, é marcada simultaneamente pela prosperidade econômica do welfare state nos países centrais capitalistas (equilibrado pelo mundo polarizado da Guerra Fria) e ao mesmo tempo pelo fim da ideia de que poderia ocorrer uma revolução na Europa.5 Esse mundo ao mesmo tempo enrijecido e estabilizado, ao qual Adorno visava fazer resistência, era ao mesmo tempo um mundo “bloqueado” para a transformação social radical e para a efetivação da liberdade (fundamento de toda esperança – e apesar do pessimismo, a obra tardia de Adorno está encharcada de utopia blochiana), mas ao mesmo tempo um mundo em que (ao menos segundo Adorno) havia lugar para a calma e para a demora do pensamento, que deveria se opor à falsidade do pânico da prática. Ou seja, é de uma relação entre pensamento e experiência temporal que se trata aqui. O fim desse mundo, inaugurado pela crise dos anos 1970 (que se desenvolve como financeirização da economia), pelo progressivo desmonte do estado de bem-estar social e marcado pela “era da emergência” (uma temporalidade da fuga), Adorno não viu.

Em 1970, após a morte de Adorno, o jornalista Jörg Drews intitula sua resenha sobre o último volume de ensaios publicado (Stichworte6) justamente: “Dar tempo ao pensamento”. E nessa resenha, ele comenta que “a leitura do livro é deprimente, pois temos o sentimento de que faz muito tempo que o autor escreveu esses textos” (Drews, 1970). Podemos dizer que pressuposto do ensaio Resignação (e talvez da obra tardia de Adorno como um todo) é a paciência como virtude (enquanto Günther Anders, seu contemporâneo que virou Bloch de ponta-cabeça, dizia justamente o contrário, que a paciência havia deixado de ser uma virtude, e que agora a espera, uma vez esvaziada de conteúdo, passava a ser realisticamente representada por “Esperando Godot” [Anders, 2010]). No ensaio Observações sobre o pensamento filosófico, presente no volume Stichworte, Adorno faz apelo à concentração, à “paciência, virtude do pensamento” e ao “olhar demorado sobre o objeto” (Adorno, 1995). Na calma do pensamento há uma experiência de felicidade, mas essa felicidade não é o gozo ensimesmado, fruto de exercícios7 intelectuais: ela é alimentada pela esperança da liberdade, da felicidade universal. “Quem pensa não se enfurece na crítica: o pensamento sublimou a fúria. (…) A felicidade que surge em seus olhos é a felicidade da humanidade” (Adorno, 1977). Sem esse horizonte, não haveria sentido para a espera, fundamento da paciência na teoria. O estranhamento com isso revela também o que foi desistido.

Notas

1 Algumas referências dessa discussão no contexto acadêmico brasileiro se encontram em Fleck, 2017, e Maar, 2011.

2 Publicado no volume Stichworte.

3 Publicados em “Fora da torre de marfim: três textos de intervenção de Theodor W. Adorno”. Revista Cult, agosto de 2016. O sexto volume das Frankfurter Adorno Blätter, organizadas pelo Arquivo Adorno juntamente com Rolf Tiedemann, traz a público também uma série de materiais a esse respeito (Adorno, 1992).

4 A figura de Marcuse, na época elevada a símbolo da nova esquerda, também tem vários lados. Pasolini,por exemplo, se irritou com uma entrevista de jornal e escreveu o texto “Também Marcuse um adulador?”, criticando a apologia dos estudantes, e dizendo que “a meta dos estudantes não é mais a Revolução, mas sim a Guerra Civil. Mas repito, a Guerra Civil é uma guerra santa que a burguesia  combate contra si mesma”. Mas admite: “Examino o Marcuse… manipulado pela entrevista, não o verdadeiro” (Pasolini, 2017). O próprio Marcuse, quando estava dando uma palestra em Roma, teve seus problemas: Cohn-Bendit, o líder estudantil que depois se tornou deputado pelo Partido Verde, armou uma cena e começou a atiçá-lo durante a palestra: “Marcuse, por que você veio para o teatro da burguesia?” “Herbert, por que a CIA te dá dinheiro?” (Cf. Chaplin, 2018).

5 Na Dialética Negativa, de 1966, Adorno escreve que a impossibilidade de se fazer justiça em relação aos nazistas se deve ao fato de, “na Alemanha, a revolução contra os fascistas ter fracassado ou, muito mais, o fato de não ter havido em 1944 nenhum movimento revolucionário de massas” (Adorno, 2009).

6 Posteriormente, o ensaio “Resignação” passa a ser publicado pela editora Suhrkamp como anexo desse livro.

7 Habermas, em Teoria do agir comunicativo, diz que a Dialética Negativa não seria outra coisa senão um “exercício”. (Cf. Habermas, 2014).

 

Referências

Adorno, T. W. (1977). “Resignation”. In: Kulturkritik und Gesellschaft II. Suhrkamp: Frankfurt am Main.

____________. (1986). “Keine Angst von dem Elfenbeinturm”. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.

____________. (1986a). “Kritische Theorie und Protestbewegung”. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.

____________. (1992). Frankfurter Adorno Blätter VI. Göttingen: Edition Text + Kritik.

____________. (1995). “Observações sobre o pensamento filosófico”. In: Palavras e sinais: modelos críticos. Petrópolis: Vozes.

____________. (1995a). “Notas marginais sobre teoria e práxis”. In: Palavras e sinais: modelos críticos. Petrópolis: Vozes.

____________. (1997). Correspondência Marcuse-Adorno: As últimas cartas. Praga, 3, pp. 7-17.

____________. (2009). Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

____________. (2016). “Fora da torre de marfim: três textos de intervenção de Theodor W. Adorno”. Revista Cult, agosto de 2016.

Anders, G. (2010). Die Antiquiertheit des Menschen I. München: Beck.
Chaplin, T. (org.). (2018). The Global 1960s: convention, contest, and counterculture.

New York: Routledge.

Drews, J. (1970). Zeit lassen zum Denken: die letzte Sammlung mit Aufsätzen Theodor W. Adornos. Die Zeit. Recuperado de: http://www.zeit.de/1970/04/zeit-lassen- zum-denken Acesso: 24/04/2018.

Fleck, A. (2017). Resignação? Práxis e política na teoria crítica tardia de Theodor W. Adorno. Revista Kriterion, Belo Horizonte, 138, Setembro/Dezembro 2017, pp. 467-490.

Habermas, J. (2014). Theorie des kommunikativen Handelns. Suhrkamp: Frankfurt am Main.

Maar, W. (2011). Política, Práxis e Pseudo-Atividade em Adorno. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, 11(1), pp. 225-244.

Pasolini, P. P. (2017). Também Marcuse um adulador?. Revista Campo Aberto, Novembro de 2017, 1(2).

 

 

TRADUÇÃO

Resignação1

Theodor W. Adorno

Nós, os representantes mais velhos do que veio a ser chamado de Escola de Frankfurt, temos sido recentemente acusados de resignação. Teríamos desenvolvido elementos de uma teoria crítica da sociedade, mas não estaríamos dispostos a extrair dela consequências práticas. Tampouco teríamos fornecido planos de ação ou mesmo apoiado as ações daqueles que se sentiam estimulados pela teoria crítica. Deixo de lado a questão de saber se isso pode ser exigido de pensadores teóricos, que são, de certo modo, instrumentos sensíveis2 e, de modo algum, à prova de choque. A determinação que lhes coube na sociedade baseada na divisão social do trabalho pode ser questionável e, talvez, eles mesmos tenham sido deformados [deformiert] por ela. Mas eles também foram formados [geformt] por ela; decerto, não poderiam suprimir, por mera vontade, aquilo que se tornaram. Não pretendo negar o momento de fraqueza subjetiva inerente ao confinamento à teoria. Considero o lado objetivo mais importante. A objeção, facilmente repetida, é mais ou menos a seguinte: aquele que a esta altura duvida da transformação radical da sociedade e que, por isso, não participa de ações espetaculares e violentas, nem as recomenda, teria renunciado. Ele não considera realizável aquilo que imagina; na verdade nunca quis realizá-lo. Na medida em que deixa o estado de coisas como está, ele o aprova sem confessar.

A distância da práxis é suspeita aos olhos de todos. Quem não arregaça as mangas e não quer sujar as mãos é desacreditado, como se a aversão a isso não fosse legítima e desvirtuada somente pelo privilégio. A desconfiança diante daquele que desconfia da práxis se dissemina desde aqueles que repetem para quem está do outro lado o velho lema “chega de conversa” até o espírito objetivo da publicidade, que propaga a imagem [Bild] – o ideal [Leitbild], como o chamam – do homem ativo e atuante; seja ele líder empresarial ou esportista. Todos devem participar. Quem apenas pensa, quem se retira, seria fraco, covarde, virtualmente um traidor. Sem que eles o percebam, o clichê hostil do intelectual opera profundamente no interior do grupo daqueles oposicionistas, que são, por sua vez, xingados de intelectuais.

Os ativistas pensantes respondem: deveria ser transformada justamente, entre outras coisas, o próprio estado de separação entre teoria e práxis. A práxis seria necessária precisamente para nos livrarmos da dominação dos homens práticos e do ideal prático. Mas logo surge daí uma proibição de pensar. Um mínimo basta para que a resistência à repressão se volte de modo repressivo contra aqueles que, por menos que queiram glorificar o próprio ser [das Selbstsein], não renunciam àquilo que se tornaram. A tão proclamada unidade entre teoria e práxis tem a tendência de passar para a predominância da práxis. Algumas vertentes difamam a própria teoria como uma forma de opressão; como se a práxis não estivesse ligada a ela de modo muito mais imediato. Em Marx, a doutrina dessa unidade era animada pela possibilidade presente da ação – não realizada já naquele momento. Hoje se delineia antes o contrário. As pessoas se aferram a ações por apreço à impossibilidade da ação. Todavia, já em Marx se oculta aí uma ferida. Talvez ele tenha exposto a décima primeira tese sobre Feuerbach de modo tão autoritário porque ele mesmo não estava totalmente certo dela. Em sua juventude, ele reivindicara a “crítica impiedosa de todo o existente [rücksichtslose Kritik alles Bestehenden]”.3 Porém, ele troçava da crítica. Mas seu famoso chiste sobre os jovens hegelianos, o termo “crítica crítica”, foi um tiro n’água, desfazendo-se em mera tautologia. A primazia forçada da práxis silenciou irracionalmente a crítica, que o próprio Marx exercia. Na Rússia e na ortodoxia de outros países, a piada maldosa sobre a crítica crítica tornou- se instrumento para que o existente [das Bestehende] pudesse acomodar-se de modo terrível. Práxis significava tão-somente: produção crescente de meios de produção; a crítica não era mais tolerada, a não ser aquela que dizia que ainda não se trabalhava o suficiente. Com facilidade, a subordinação da teoria à práxis se inverteu no serviço a uma opressão renovada.

A intolerância repressiva contra o pensamento que não vem imediatamente acompanhado da instrução para a ação funda-se no medo. O pensamento não tutelado e a atitude que não permite barganhá-lo devem ser temidos, pois, no fundo, sabe-se o que não se deve admitir: que o pensamento tem razão. Um antigo mecanismo burguês, que os iluministas [Aufklärer] do século XVIII conheciam bem, se repete, mas de modo inalterado: o sofrimento causado por um estado negativo, desta vez, por uma realidade bloqueada, se torna fúria contra aquele que o exprime.

O pensamento, o esclarecimento consciente de si mesmo, ameaça desencantar a pseudo-realidade na qual se move o ativismo, segundo a formulação de Habermas. Só se pode tolerar esse ativismo porque ele é tomado como pseudo-realidade. Enquanto postura subjetiva, a pseudo-realidade é conjugada à pseudo-atividade – um fazer que se dissimula e é ativado graças à própria publicity, sem admitir em que medida ele serve como satisfação substitutiva, elevando-se a um fim em si mesmo. Encarcerados querem desesperadamente sair. Em tais situações, não se pensa mais, ou se pensa somente com pressupostos fictícios. Na práxis hipostasiada, apenas se reage e, por isso mesmo, de maneira falsa. Somente o pensamento poderia encontrar uma saída, mais precisamente um pensamento para o qual não se prescreve aquilo que dele deveria resultar, como tão frequentemente ocorre naquelas discussões em que se predetermina quem deve ter razão e que, portanto, não avançam a questão, mas se degeneram inevitavelmente em questões táticas. Se as portas estão obstruídas, então o pensamento, menos ainda, deve ser interrompido. Ele deveria primeiro analisar as razões e então extrair as consequências. Cabe a ele não aceitar a situação como definitiva. Ela se transformaria, caso isso seja possível, somente através de uma compreensão [Einsicht] irrestrita. O salto na práxis não cura o pensamento da resignação enquanto ele for pago com o saber secreto de que este não é o caminho.

A pseudo-atividade é, em geral, a tentativa de salvar enclaves de imediaticidade em meio a uma sociedade completamente mediada e endurecida. Tais tentativas são racionalizadas dizendo-se que a pequena transformação seria uma etapa do longo caminho em direção à transformação do todo. O modelo fatal da pseudo-atividade é o “do it yourself”, o faça você mesmo: atividades em que se executa aquilo que, já há muito tempo, pode ser melhor executado com o auxílio da produção industrial, apenas para despertar nos indivíduos não-livres, paralisados em sua espontaneidade, a confiança de que são importantes. A estupidez do “faça você mesmo” na produção de bens materiais e também em muitos reparos é evidente. Ela não é, entretanto, total. Na escassez dos assim chamados services, prestações de serviços, as medidas que uma pessoa privada toma, algumas vezes desnecessárias segundo o nível técnico, cumprem uma finalidade quase racional. O “faça você mesmo” na política não é exatamente do mesmo tipo. Os próprios homens são a sociedade que impenetravelmente faz frente a eles. A confiança na ação limitada de pequenos grupos lembra a espontaneidade, que se atrofia sob o todo enrijecido sem a qual este não pode se transformar em um outro. O mundo administrado tende a asfixiar toda espontaneidade, e por fim a canalizá-la em pseudo-atividade. Pelo menos, isso não funciona tão sem atritos como os agentes do mundo administrado esperavam. Entretanto, a espontaneidade não deve ser hipostasiada, tampouco separada de sua situação objetiva e idolatrada como o próprio mundo administrado. Do contrário, o machado em casa, que nunca dispensa o carpinteiro4, quebra a próxima porta e a tropa de choque toma posição. Também ações políticas podem rebaixar-se a pseudo-atividades, a teatro. Não é por acaso que os ideais de ação imediata, eles mesmos propaganda do ato, são ressuscitados depois que as organizações, outrora progressistas, se integraram docilmente e desenvolveram, em todos os países do mundo, traços daquilo contra o qual uma vez se opuseram. Mas, assim, a crítica ao anarquismo não chegou a caducar. Seu retorno é aquele de um fantasma. A impaciência ante a teoria, que nela se manifesta, não leva o pensamento para além de si mesmo. Na medida em que ela o esquece, fica aquém do pensamento.

Isso é facilitado para o indivíduo por meio de sua capitulação diante do coletivo com o qual ele se identifica. Ele é poupado de reconhecer sua impotência; os poucos tornam-se muitos. Esse ato, e não o pensamento resoluto, é resignado. Não rege nenhuma relação transparente entre os interesses do Eu e o coletivo, a que ele se entrega. O Eu deve se apagar para se tornar parte da eleição da graça do coletivo. Implicitamente se ergue um imperativo categórico pouco kantiano: tu deves assinar embaixo. O sentimento de nova proteção [Geborgenheit] é pago com o sacrifício do pensamento autônomo. É um consolo enganoso a ideia de que se pensaria melhor no contexto da ação coletiva: o ato de pensar, como mero instrumento de ações, é embotado como a razão instrumental em geral. Nenhuma forma [Gestalt] superior de sociedade é concretamente visível neste momento: por isso, há algo regressivo naquele que se comporta como se isso estivesse ao alcance da mão. Mas quem regride, segundo Freud, não alcançou a meta de sua pulsão [Triebziel]. A degeneração regressiva [Rückbildung] é objetivamente renúncia, mesmo se ela se considera o contrário disto e propaga ingenuamente o princípio do prazer.

Frente a isto, o pensador crítico descompromissado, que não falseia a consciência e nem se deixa aterrorizar a agir, é aquele que na verdade não desiste. Pensar não é a reprodução intelectual daquilo que, em todo caso, é. Enquanto o pensamento não cessar, ele guarda a possibilidade. Sua insaciedade, sua aversão a deixar-se enganar, recusa a tola sabedoria da resignação. Nele, o momento utópico é tão mais forte quanto menos ele se objetivar em utopia – também isso uma forma de regressão –, de modo a sabotar sua realização. O pensamento aberto aponta para além de si mesmo. Sendo ele próprio um comportamento, uma figura [Gestalt] da práxis, ele tem mais afinidade com a práxis transformadora do que aquele que obedece em nome da práxis. Na verdade, diante de todo conteúdo particular, o pensamento já é a força para a resistência e só arduamente foi alienado dela. Um tal conceito enfático de pensamento certamente não é encoberto nem pelas relações existentes, nem por fins a serem alcançados, nem por quaisquer batalhões. O que fora uma vez pensado, pode ser reprimido, esquecido, levado embora. Todavia, ele não se deixa persuadir que algo daquilo sobrevive. Pois o pensamento possui o momento do universal. O que foi pensado de forma precisa deve ser pensado por outros, em outros lugares: essa confiança acompanha ainda o pensamento mais solitário e impotente. Quem pensa não se enfurece na crítica: o pensamento sublimou a fúria. Uma vez que aquele que pensa não força a si mesmo, ele também não quer forçar os outros. A felicidade que surge em seus olhos é a felicidade da humanidade. A tendência universal de repressão vai contra o pensamento enquanto tal. Ele é felicidade, mesmo ali onde determina a infelicidade: na medida em que a expressa. Somente assim a felicidade penetra na infelicidade universal. Quem não permite isto definhar não se resignou.

 

Texto originalmente publicado na Revista Cadernos de Filosofia Alemã | v. 23; n. 1 | pp.107-115 disponível em: https://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/issue/view/10623, acesso em 15 jun. 2021

 

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