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Tibet: a tradição pressionada entre a China, a globalização e o turismo de massa

por Rita Alves

Para o Ocidente o Tibet (ou Tibete, em português) é um lugar recheado de sonhos, encantamento e magia, mas também é visto com um lugar exótico, repleto de mistérios e segredos que se escondem sob o Himalaia, a mítica montanha magnificada por décadas na literatura e cinema que mobiliaram nosso imaginário; muitos pensam no Tibet como a Shangri-lá que está logo ali. Mas bastam alguns minutos de pesquisa na internet para constatarmos que a situação cultural e política tibetana é dramática.

Mapa da região do Tibete. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tibete

Mapa da região do Tibete. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tibete

Em outubro de 1950 o Tibet foi ocupado pelos militares da China comunista sob pretexto de libertar os tibetanos do imperialismo inglês; até então, desde o século XVII, era comandado por governos encabeçados pelos Dalais Lamas, uma linhagem de líderes políticos espirituais. Apesar de serem governos subordinados ao império chinês, em 1913 o 13o Dalai Lama expulsou os chineses do território tibetano, e com a ocupação chinesa comunista, em 1959, o 14o Dalai Lama fugiu para a India, acompanhado de seus seguidores e um grupo de líderes tibetanos e de lá comanda a Administração Central Tibetana, um governo que funciona no exílio e que tem mais papel simbólico de resistência do que efetividade prática na vida tibetana. Neste período mais de um milhão de tibetanos pereceram sob as armas chinesas e dezenas de monastérios foram destruídos.

Nas últimas décadas a China vem promovendo a integração progressiva do Tibet, a despeito das resistências e principalmente as divergências culturais e religiosas. Se, por um lado, o Tibet tem sua história articulada à da China, por outro lado tem suas particularidades que fazem com que o povo tibetano não se identifique com o império comunista. Este não reconhecimento assenta-se, em primeiro lugar, na língua; enquanto na China se fala atualmente o mandarim, no Tibet fala-se o tibetano, pertencente ao ramo das línguas himalaias, e que envolve dezenas de dialetos regionais. Na religiosidade, porém, encontra-se o principal fator de afastamento cultural: enquanto a China comunista ainda proclama, oficialmente, o ateísmo, o Tibet tem suas raízes ancoradas no budismo, religião que articula o modo de vida dos tibetanos, sua alimentação, relação com a natureza e com a política.  Para incômodo do governo chinês,  surge no mundo globalizado o movimento “Tibet Free” que por meio de artistas, personalidades do esporte e da política ocidentais, chama a atenção para a delicada situação do Tibet frente ao avanço chinês que não mede esforços para levar para lá o que eles chamam de “progresso” e acompanhado das benesses do capitalismo, como as fábricas de produtos tecnológicos, o turismo de massa, shoppings centers, etc. Ponto para o Dalai Lama, que exilado e “persona non grata” na China, ganha visibilidade e apoio internacionais

Em 2006 o governo chinês inaugurou a estrada de ferro que abriu definitivamente o Tibet para os chineses e os turistas estrangeiros. São 1000 quilômetros entre Golmud  (uma cidade poeirenta na província de Qinghai, no extremo oeste da China) e Lhasa, capital do Tibet. Os peregrinos de antigamente levavam 3 meses caminhando entre montanhas a quase 5000 metros de altitude, mas os atuais fazem o percurso em apenas 48 horas. Pela ferrovia chegam centenas de trabalhadores chineses por mês que veem nos investimentos chineses no Tibet uma oportunidade de se ganhar mais dinheiro que nos grandes centros urbanos chineses. O principal mercado é o da construção civil e negócios voltados ao turismo estrangeiro. Para o governo, este trem leva a prosperidade; para os tibetanos, ele representa a segunda invasão: a invasão estrangeira que está modificando rapidamente a frágil cultura tibetana. Se até o início do século XX Lhasa era uma cidade proibida aos estrangeiros, atualmente ela recebe cerca de 3 milhões de turistas por ano. Destes, 90% são chineses; na China está na moda ir ao Tibet conhecer a terra sagrada e suas origens budistas (Castro, 2008).

No documentário “China: tradiciones y contradicciones” vemos que os chineses que ali foram viver se relacionam pouco com os tibetanos por não dominarem o mandarim, e que esses migrantes não sentem o peso da vida no estrangeiro na medida em que o modo de vida chinês ocupou totalmente o cotidiano de Lhasa, aos poucos os tibetanos vão incorporando os costumes chineses, como a alimentação baseada em arroz e verduras, que praticamente inexistiam ali há uma década, mas que agora, com os investimentos governamentais e expropriações de terras em favor de cooperativas de chineses, proliferam como agricultura em escala industrial. Para o jornalista Fabiano Maisonnave, “o resultado é que o novo casco urbano (de Lhasa) se assemelha a qualquer cidade chinesa, com avenidas largas e prédios sem nenhum atrativo arquitetônico maior. Em alguns comércios, os letreiros estão em mandarim, esquecendo o tibetano e sua grafia própria” (Maisonnave, 2012)

Para além das questões políticas, o Tibet vê-se pressionado pelo processo de globalização que, por meio do desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação, altera a conformação do espaço planetário. A globalização como já sabemos não é uma via de mão dupla na qual as partes interagem em igualdade de forças; pelo contrário: na globalização vemos a acentuação dos processos hegemônicos de aculturação e criação de uma cultura global. Os brasileiros Milton Santos (2008) e Otavio Ianni (1992) já apontaram nos anos 1990 os efeitos nefastos da globalização: a criação de um espaço mundial homogeneizado e encabeçado por forcas políticas hegemônicas; a alteração de modos de vida tradicionais que se veem pressionados pelos imperativos do consumo globalizado.

Cartaz do filme "Sete anos no Tibete" (TriStar Pictures/USA; Entertainment Film Distributors/UK)

Cartaz do filme “Sete anos no Tibete” (TriStar Pictures/USA;
Entertainment Film Distributors/UK)

A globalização se fez presente no Tibet também por meio do filme “Sete anos no Tibet” (1997), dirigido pelo francês Jean Jacques Annaud, estrelado por Brad Pitt e filmado, na verdade, em Mendoza (Argentina) frente à falta de autorização por parte do governo local. Recente pesquisa acadêmica aponta que “muitos países observaram o aumento do número de turistas após sua exposição no cinema” (Silva et al, 2011: 369) e que o cinema é importante ferramenta de divulgação turística. Mas frente à invasão turística em massa dos últimos anos, faz-se necessário  avaliarmos os benefícios e os estragos causados na cultura local por este processo e, ademais, qual a real necessidade desse tipo de divulgação turística frente à frágil situação política e cultural do Tibet. A quem interessa a invasão de turistas chineses e estrangeiros que o Tibet presencia?

Para além desse aspecto preocupante do processo de globalização podemos apontar outro ponto de vista. Se, por um lado, “o hipercapitalismo desponta como o império da homogeneização globalizada dos produtos, dos consumidores e das culturas” (Lipovetsky  e Serroy, 2011: 114), ao mesmo tempo sabemos que a erradicação das diferenças culturais por meio da globalização padronizante não ocorreu como imaginavam as perspectivas catastróficas; o “princípio da glocalização”  pressupõe que a “gestão intercultural empenha-se em combinar o universal com o particular, o racional com o tradicional, a unidade moderna com a diversidade dos costumes”  (Lipovetsky  e Serroy, 2011: 115). Ou seja, a cultura global articula-se de forma complexa à local, mas sem necessariamente apaga-la, pelo contrário, surgem formas de resistência e mesclas que atestam a vitalidade da cultura local. (Mira, 1994). No caso do Tibet infelizmente pouco se percebe dessa vitalidade da cultura local; muito pelo contrário, a cultura tibetana parece aos poucos sucumbir à cultura globalizada que chega com o turismo externo e estrangeiro e principalmente com o turismo interno estimulado pelo governo chinês como estratégia política de incorporação cultural do Tibet ao governo central. Apesar disso, no documentário citado vemos o presidente da Associação de Escritores do Tibet, Ta Shi DA WA, afirmar: “o tipo de vida que se impõe com a globalização deve conviver com as tradições, não há por que excluírem-se mutuamente. O que temos que encontrar é uma forma de rearticular o modo de vida globalizada às tradições, fazer uma fusão das duas coisas”. Assim, ao mesmo tempo em que a dominação chinesa, a globalização e o turismo de massa põem em risco tanto a cultura quanto o ecossistema do Tibet, surgem vozes resistentes que reivindicam o direito à manutenção das tradições, das crenças e do modo de vida tibetanos, mesmo frente à inevitável e rápida transformação que estão vivenciando.

Turistas em Lhasa, capital do Tibet. Fonte: http://brcdaily.com/site/tibet-apresenta-elevacao-no-turismo/

Turistas em Lhasa, capital do Tibet. Fonte: http://brcdaily.com/site/tibet-apresenta-elevacao-no-turismo/

Referências bibliográficas

CASTRO, Haroldo. “Tibete, paraíso e inferno”. Revista Época, edição 504, 11/01/2008. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81041-6014-504,00.html  > Acessado em 21/11/2013.

IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

MAISONNAVE, Fabiano. “Turismo desenfreado traz mudanças à capital Lhasa”. Jornal Folha de São Paulo, 13/09/2012. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/turismo/65913-turismo-desenfreado-traz-mudancas-a-capital-lhasa.shtml  > Acessado em 21/11/2013.

MIRA, Maria Celeste. “O global e o local: mídia, identidades e usos da cultura”. In: Revista Margem, n.3, dezembro de 1994, p. 131-149

SANTOS. Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2008.

SILVA, Rejane dos Santos (et al). “Turismo e cinema: promoção turística a partir do filme “Sete anos no Tibete”. Revista Rosa dos ventos. Programa de Pós-Graduação em Turismo da Universidade de Caxias do Sul. Jul/dez 2011, vol. 3/n.3. Disponível em http://ucs.br/etc/revistas/index.php/rosadosventos/article/view/1117/pdf_57 > Acessado em 21/11/2013.

Netgrafia

Documentário “China: tradiciones y contradicciones”, parte 2: http://www.youtube.com/watch?v=Ycbu7bONaYs   > Acessado em 21/11/2013

Documentário “China: tradiciones y contradicciones”, parte 3: http://www.youtube.com/watch?v=yP-yzXZts2g> Acessado em 21/11/2013

Página do Movimento Tibete Livre – Brasil:  http://tibetelivrebrasil.blogspot.com.br/ > Acessado em 21/11/2013

Filme “Sete anos no Tibete”. Trailer oficial disponível em http://www.youtube.com/watch?v=l_IGypkra3E